Sábado estava voltando para casa exausta e comecei a escutar uma conversa num bar da esquina. Eram três velhinhos falando alto sobre racismo, dois negros e um branco. Comecei a andar mais devagar para conseguir escutar por mais tempo a conversa e quando já estava prestes a atravessar a rua, o velhinho negro da ponta disse:

 

Se os negros fossem mais violentos o Brasil seria um país melhor.

 

Me peguei pensando sobre isso no campo individual:  se eu negra fosse mais violenta com quem me feriu de forma racista eu teria tido uma vida melhor?

Vejo que mesmo entre nós, ativistas, dizemos ter raiva contra racistas, mas somos os primeiros a querer a aprovação de alguns, a nos envolver e repartir com eles nossos sucessos. Até mesmo a acreditar que eles são menos racistas e conceder a eles o direito de se opor aqueles que também carregam a mesma marca que nós. No fundo nós, negros, somos os que mais acreditam na ideia de que “nem todo mundo é racista”, pois somos muito mais gentis com as pessoas brancas, do que elas de fato são conosco. No fundo, até mesmo quando se relacionam com nós negros, os brancos conseguem sair muito mais vitoriosos do que nós, negros, saímos dessas trocas.

E com nosso psicológico ferrado pelo próprio racismo, a gente ainda acha que na maioria das vezes estamos exagerando, esquecendo que exagero é um de nós morrer a cada 23 minutos e grande parte do país viver como se isso fosse um detalhe. O racismo já se tornou tão corriqueiro em nossas vidas depois de um tempo, que nós tiramos o direito de sentir raiva, como se ter ódio demonstrasse nossa fraqueza.

Estou cansada de não dormir assombrada pelo racismo.

Enquanto negra fui ensinada a conciliar sem nem ao menos perceber que não querer perdoar, conciliar e conviver com algumas pessoas não me transforma em monstro. Preciso ter o direito a raiva. E querem me tirar isso a todo momento, se esquecendo que essa também é uma forma de me silenciar. Eu não sou obrigada a ficar de boa, quando as coisas não estão de boa para pessoas como eu.

Recentemente um colega de faculdade me contou que em sua banca de TCC, uma pessoa começou a falar de mim, um dos convidados da professora disse que eu era agressiva. Quando fiquei sabendo achei, além de deselegante, super antiprofissional, pensei então em várias coisas, xingar, brigar com ele, mandar um sonoro:  vá a merda, mas só exclui ele das minhas redes e depois me senti incapaz. Fico impressionada como essas pessoas não conseguem viver a vida delas, sem se incomodar com a existência de pessoas negras falando do racismo. Tudo isso me remeteu a um trauma que tive durante a universidade, quando resolvi escrever um texto denunciando tudo o que acontecia naquele espaço, inclusive já ter tido meu armário pichado e recebido ameaça de agressão física.

 

 

Quando escrevi sobre o que passei, a única coisa que eu sentia é que se eu não falasse eu iria sucumbir, mas como era de se esperar muita gente não me entendeu. O pós-texto foi pior do que antes…

Já que tive que lidar com pessoas julgando o que eu estava sentindo, sem nem ao menos me perguntar por que precisei escrever aquilo.

Cinco anos de faculdade, com dois deles recebendo mensagens anônimas me chamando de pobre, macaca, chata e até mesmo falando que eu merecia apanhar. E claro, que quem exagerou fui eu ao escrever sobre, era isso que o olhar dos alunos e até dos professores pseudo engajados em causas sociais dizia. Um dos meus colegas de trabalho que em dada situação me disse que negros fediam, veio desesperado me cobrar uma conversa com ele depois do tal texto. Eu esperava um pedido de desculpas. O que me veio? Ele me dizendo que eu estava prejudicando a carreira dele, mesmo que no texto eu sequer tivesse citado o nome dele e só o que ele tinha dito, e que era terrível da minha parte a forma como levei para o pessoal o que ele nem lembrava ter falado.

Foi nesse momento que fui percebendo que mesmo jovens, pessoas brancas já são ensinadas a jogar para nós negros, a culpa do próprio racismo delas. Mesmo sem nem citar o nome dele, a raiva por eu ter exposto que ele era violento e racista, era maior do que a noção de que se o nome dele não estava ali, então sequer ele seria reconhecido ou de fato prejudicado. E para mim isso tudo se completou quando os alunos da universidade, que se julgavam os mais engajados, resolveram fazer uma reunião para tratar o tema “racismo na faculdade de arquitetura”.

Acreditei que, por serem alunos reconhecidos pelos professores por suas boas atitudes, eles iriam me apoiar. Foi aí que vi como os filhos da sociedade racista, mesmo com 19, 20 anos, já sabem muito bem acender a fogueira para colocar nela quem os atrapalha.

Fizeram uma reunião numa sala pequena, me colocaram sentada numa cadeira e ficaram me filmando por todos aqueles minutos em que todos me cercavam com caras feias me fazendo perguntas agressivas.

Parece cena de filme? Mas nao é. Lembro que bloqueei isso da minha mente de tal forma, que só retornei a esse fato anos depois quando um colega de faculdade, numa conversa de bar, me lembrou dessa situação surreal. Mais surreal ainda foi ter que fazer o trabalho de conclusão do lado de alguns desses alunos e ser cobrada por professores para ser “amigável”.

E se eu não quiser ser? E de fato não fui amigável. Qual o problema nisso?

Na época ,eu queria que algumas pessoas tivessem sido expulsas, mas não tinha coragem de dizer isso publicamente, pois sempre colocaram nas minhas costas a decisão. A própria instituição fez isso para não ter responsabilidade, e claro, deixar sempre demarcado que todo o problema era eu.

 

 

Quando assisti ao último episódio da quarta temporada de Black Mirror, Black Museum, tudo isso me veio à cabeça, afinal, como eu queria ter tido o direito de me vingar. De sair gritando: Vai todo mundo tomar no cu, seus merdas. Eu estou de saco cheio dessa porra! Mas eu não pude, e não fiz. E muitas vezes eu acho que assim como a personagem Nish:

O ato do racismo dói, mas o sentimento de impotência diante dele dói mais ainda.

Por isso, nem sequer vejo a ação dela como uma vingança simples, é uma resposta a ela mesma, a consciência dela, a busca pela própria paz.

Tanto que, quando conseguimos fazer algo, é como se estivéssemos zerando nossas vidas e começando tudo de novo. Sonho mesmo em me vingar de todos que me fizeram acreditar que por ser negra eu não tinha valor, que zoaram meu cabelo, que me deram apelidos racistas, que infernizaram minha vida na universidade, que me chamaram de macaca, que me mandaram voltar para África, já que eu era uma “macaca”, que me disseram que eu era uma “preta feia”, que me mandaram abandonar a universidade “porque ninguém gostava de mim lá”, que me disseram que negros fedem, mas até que eu era cheirosa. Eu queria poder me vingar como Nish, pelos que vieram antes e pelos que ainda virão.

O episódio Black Museum, que considero o melhor de todas as temporadas, me lembrou os museus racistas, como os que Saartjie Baartman foi exposta viva e morta. Eu queria me vingar por Saartjie, por anos que ela foi exposta como um animal quando ainda viva, e por todos os outros anos que colocaram sua vagina num museu como objeto a ser visto depois de morta.

Queria me vingar pelos meus tataravós, bisavós, avós, que tiveram seu direito de ter uma vida digna nesse país censurado por sua cor de pele. Queria poder me vingar pelo futuro dos meus, que ainda vão ser de alguma forma ceifados pelo racismo estrutural que não envergonha esse país. Queria me vingar porque eu também acredito na raiva como uma defesa. Como disse recentemente Mbuyiseni Ndlozi: “O tempo das desculpas pelo racismo acabou, deve haver consequências para o racismo, ponto final!”

Nós, evidentemente precisamos mais do que desculpas. Precisamos ter a certeza que as coisas não se repetirão, e isso não estão nos dando, pois os brancos  nem se esforçam para tal. Foi com a personagem Nish que eu percebi que a violência dela para com quem destruiu sua família, foi de fato o que a libertou. Em 2018, nós negros precisamos saber que nossa liberdade ainda tem que ser conquistada.

 

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