Toda vez que uma produção midiática com negros é lançada, chove nas minhas redes sociais comentários vindos de negros sobre tal obra, e com o longa da Netflix “ A Incrível Jessica James” não foi diferente. O filme se tornou queridinho para muitos, seduziu principalmente mulheres negras com seu roteiro simples, leve e que remete a um episódio de uma série. Tudo sendo ilustrado por uma paleta de cores cuidadosa, enredo com referências aos temas atuais e uma protagonista negra que não segue os padrões estéticos coloristas de negros celebrados na mídia, protagonizando uma narrativa sem problemas violentos. ENTRETANTO, não gosto de tudo que vi nesse filme e é sobre esse meu desconforto que resolvi escrever.

Gosto de muitas coisas em “A Incrível Jessica James”, inclusive a própria Jéssica, mas acho assustador o personagem Boone. E acredito que esse sentimento tem a ver com uma questão pessoal de já ter me envolvido com homens que são frágeis e fofos, mas que se mostraram agressores de mulheres conforme o relacionamento vai se aprofundando, tendo como sua principal arma a violência psicológica camuflada de demonstração de afeto e preocupação.

No caso, o personagem Boone ao longo do filme deu um sinal de que ele é um homem abusivo. Veja bem, muitas pessoas que gostaram deste filme acharam legal a forma como o relacionamento de Jessica foi sendo construindo em relação a esse personagem. Eu gostei apenas do final em aberto, torcendo para que ela se torne apenas amiga desse homem e nada mais. E se você acha que estou exagerando, respira que vou explicar porque os sinais dados por Boone me deixaram tão desconfortável.

No filme, depois de passar uma noite com Boone, Jessica recebe um telefonema dele inesperado. Até ai, ok. Conforme a conversa flui e ele marca com ela de se verem, a câmera mostra onde Boone está. Pois bem, enquanto Boone liga para Jéssica, ele estava na frente da casa da sua ex, literalmente no meio do lixo da sua ex, vigiando-a. E isso acontece uma segunda vez, depois que Jéssica e Boone se encontram, ele resolve ligar para Jéssica mais uma vez e marcar o que seria um “encontro de verdade”. E aí, ele está novamente na frente da casa da sua ex, e chega a ser interceptado pelo atual parceiro dela, por estar rondando e vigiando a casa dela.

Isso é ASSUSTADOR!

Por mais que eu entenda que muita gente tenha ignorado o comportamento de Boone visando focar na narrativa de Jessica, o que Boone faz no filme, não é mera banalidade. Não é engraçado. Não é fofo. Não é amor. E não faz parte de um processo natural de término. Se seu relacionamento termina e você ainda não se desconectou da pessoa, é normal sentir saudades, e até ter fantasias como as que Jéssica vai tendo ao longo do filme. Contudo, perseguir por meio de redes sociais ou mesmo fisicamente são condutas que muitas pessoas acreditam ser normal, mas que são uma violência que atinge principalmente mulheres, dada a sociedade patriarcal que nos coloca num lugar de objeto e não de sujeitas de nós mesmas. O que Boone faz é Stalking.

 

 

E no que diz respeito a esse assunto, na Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Irlanda, Itália, Malta, Portugal e Reino Unido, já consideram stalking CRIME. Existe, nesses países citados, uma Lei anti-stalking que passou a considerar crime a perseguição obsessiva de ex-parceiros. Em Portugal já se tem dados identificando que a maioria das vítimas de stalking são mulheres e que seus agressores são em sua maioria homens. Esse dado pode ser analisado como uma prova que de que o stalking é também uma violência de gênero. No Brasil, mesmo stalking não sendo crime, ele já é assunto recorrente entre juristas. O juiz Marco Henrique Caldeira Brant, da 11ª Vara Criminal da Comarca de Belo Horizonte, escreveu neste artigo para o Jornal Estado de Minas, a seguinte definição de stalking que pode jogar luz para que você compreenda melhor o assunto e identifique tais condutas:

Stalking é uma palavra de origem inglesa derivada da tradução do verbo to stalk, que pode ser entendido como ficar à espreita, vigiar, espiar. E, no campo jurídico penal, significa perseguição obsessiva a uma pessoa a ponto de causar-lhe medo e ansiedade, ficando gravemente prejudicada em seu estilo de vida. (…) O agente acometido pelo stalking tem uma conduta de assédio correspondendo a uma obsessiva perseguição ativa e sucessiva à vítima, sempre na busca incessante de manter-se próximo a esta, por motivos variados, como amor, desamor, vingança, ódio, brincadeira e inveja. Como exemplos das táticas de perseguição e meios executórios temos: chamadas no telefone móvel ou celular; espera na saída do trabalho ou residência; envio de presentes indesejados; encontros provocados; cartas; mensagens no celular; e-mail e outros meios inconvenientes de impor a presença refutada e agredir psicologicamente a vítima.

É perceptível que os meios jurídicos e agentes ligados à aplicação de leis, estão muito envolvidos com o que se entende por stalking e as tentativas de tipificar tais condutas visando proteção das vítimas, existindo uma pressão dentro do próprio campo jurídico para que stalking se torne crime no Brasil. Mas, mesmo assim, já existem formas de proteger as vítimas de tais condutas. Perguntei para a advogada especialista em direitos das mulheres, Luciana Terra, sobre esse assunto e, segundo ela, mesmo que a Lei Maria da Penha não fale de stalking, a mesma lei prevê violência psicológica como conduta criminosa como consta no seu Art. 5º:

Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Segundo a advogada, a vítima de stalking sente-se fraca, vulnerável e insegura, sentimentos que afetam a sua qualidade de vida e são provas do efeito da violência psicológica. Para a advogada, as vítimas têm sua paz interior abalada, modificada, em função dos inúmeros transtornos e aborrecimentos causados pelo ato doloso da perseguição. Por isso, ela ressalta que, no que se define como violência psicológica, é possível identificar que vigilância e outras formas de perseguição constam como fatores causadores dentro da própria Lei Maria da Penha:

Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

A advogada ainda ressaltou que a violência psicológica é uma violência que destrói e subjuga silenciosamente, não sendo facilmente identificada, dado que muitas vítimas denunciam apenas violência física. Por isso, é importante denunciar e identificar os sinais. Para mim, Boone, que é pintado como um homem bobo, na verdade é um homem stalkeando a ex dando sinais de que ele é CILADA! E identificar isso é muito importante para a construção de relacionamentos saudáveis, uma realidade que desejo para todas nós mulheres, em especial as mulheres negras que devido a raça e gênero, são impactadas na construção afetiva e de autoestima, se tornando recorrentemente vítimas de relações muito abusivas e com muitas dificuldades para se desconectar dessas.

Quero finalizar dizendo que, quando se trata de filmes, faço sempre o exercício de imaginação em relação ao tratamento dado às mulheres. Coloquei-me no lugar da ex de Boone, pensei como me sentiria caso meu ex ficasse na frente de casa me olhando e patrulhando? Sentiria MEDO. Do outro lado, também me imaginei sendo uma moça que está recebendo ligações de um ficante enquanto ele vigia a ex. Senti mais MEDO. Por trás daquele discurso moderninho de homem que criou aplicativo, que adora falar o que está sentindo e que se mostra apaixonadinho por Jones, Boone é mais um branco alternativo com comportamento abusivo que desrespeita mulheres, e isso precisava ser dito.

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