Estava conversando com um colega no último fim de semana sobre como algumas pautas do ativismo avançaram midiaticamente, contudo, perdem muito do seu conteúdo crítico mais profundo, sendo constantemente reproduzidas de forma um tanto quanto rasa. Acredito que nesse sentido o feminismo se encaixa nessa pauta, mesmo que exista uma larga produção de conteúdos, muito do que vem sendo assimilado é só a ponta do iceberg. De um lado, enquanto feminista estou contente que os temas estejam na boca de todos, do outro, acho que é preciso continuar pautando a necessidade de aprofundamento em relação a essas narrativas que são de militância, mas também de sobrevivência de tão urgentes e necessárias para a vida de nós, mulheres.
Por isso, quando estávamos todos criticando os brasileiros que assediaram uma série de russas durante a Copa do Mundo, me pareceu que muitos enfatizaram a ideia de “são monstros”, “são violentos”, são “homens descontrolados”. Ora, são homens comuns, como um deles mesmo disse “pais de família”, homens do cotidiano que dentro de seus privilégios de gênero, classe e raça se sentem, nesse país, os donos de todos e de tudo. Homens que não poderiam ser representados por essa charge:
Pois, como é possível notar, os homens são representados enquanto figuras monstruosas e animalescas. Esta charge é uma crítica à conduta deles por parte do artista? Sim. Porém, não deixa de ser um reforço do “senso comum” de que homens com condutas machistas são homens “irracionais”, quando na verdade não há nada de anormal na conduta deles, pois ela é apoiada e permitida por uma sociedade pautada numa cultura de ódio às mulheres. Sendo assim, estamos querendo quebrar o normal quando criticamos o machismo, e esses são homens normais com condutas apoiadas numa normalidade nociva. Portanto, representá-los como “carrascos animalescos” vai para irrealidade, pois parece que são seres irracionais e não a norma.
E o que isso tem a ver com aborto?
Parece que, se tratando de debates envolvendo a luta de mulheres, muitos, mesmo querendo defender nossos direitos, caem no senso comum reforçando ideias que não são de todo positivas.
Veja, desde 14 de junho estamos debatendo o aborto nas redes públicas. Essa foi a data que a Câmara da Argentina aprovou por quatro votos a mais a legalização do aborto. Esse foi o primeiro passo para que, de fato, as argentinas possam ter direito sobre seus corpos e suas escolhas garantido pelo Estado, falta ainda o Senado e o presidente que já demonstra apoio a legalização do apoio na Argentina até a 14ª semana de gestação. Com isso acontecendo com nossos vizinhos, tanto quem é contra quanto pró-aborto seguro e legal em terras brasileiras passou a falar desse tema nas redes sociais.
E aí?
E aí que muitas pessoas caíram na infelicidade de dizer que homens também abortam quando abandonam seus filhos. Gente, sendo filha de uma mulher que criou duas filhas sozinha sem a presença de um homem/pai em nossas vidas, posso garantir que existe uma diferença enorme entre ser milímetros de células dentro de um útero, com ser uma criança nascida, que precisa comer, dormir, ir para escola, ter o acompanhamento diário constante por no mínimo 15 anos de sua vida. E que, depois dessa idade, mesmo não sendo uma criança, vai continuar precisando de apoio dos pais para seu desenvolvimento pleno.
Afeto, carinho, educação, conexão com sua identidade e qualidade de vida, é isso que crianças perdem quando muitos homens optam por fazer filhos, mas não se responsabilizam por eles. Do outro lado, mulheres se tornam mães sobrecarregadas, julgadas e sempre tentando sanar um vazio que não foi deixado por elas.
É óbvio que tanto o abandono paterno quanto impedir mulheres do direito ao aborto seguro e legal, nasce da mesma estrutura machista. Mas são situações diferentes que prejudicam mulheres de formas distintas.
Um abandono paterno acarreta consequências de desgaste psicológico e físico de mulheres mães e de crianças que têm isso como uma cicatriz eterna. Para mim, é meio óbvio que a maioria dos projetos sobre aborto preveem aborto seguro e legal quando sequer existe uma criança de fato, então sequer existe as mesmas necessidades físicas e psicológicas para se comparar às realidades de um aborto com a de um abandono paterno.
Ao simetrizar isso, me parece que estamos dizendo que mulheres “abortam” crianças, assim como homens abandonam crianças. E não, não estamos falando de uma criança formada, plena, nascida que necessita 100% dos pais. Estamos falando de um feto, caso seja um aborto depois da nona semana, ou algo que viria a ser um feto caso o aborto aconteça antes disso. Então, não é simétrico. Não é a mesma coisa. E não tem o mesmo peso na sociedade.
E precisamos parar de usar essa analogia para convencer pessoas, que na verdade precisam ter em suas cabeças algo bem claro: mulheres também são gente e têm que fazer suas escolhas para suas vidas. Você concorde ou não, quando mulheres abortam, isso não te afeta em nada, a não ser pelo fato dos gastos de dinheiro público, no caso do Brasil, para lidar com as consequências de abortos clandestinos. E se você quer se preocupar com algo, aí sim concordo, se preocupe em zelar pela qualidade de vida de crianças já nascidas, muitas delas que têm seu crescimento pleno afetado pelos abandonos de homens que fazem parte muitas vezes do seu cotidiano e isso não parece te gerar repulsa e ódio da mesma forma que mulheres optando por abortar.
Além disso, quando pensamos no que leva mulheres abortarem, existe uma série de fatores distintos. Quando pensamos que existem, só no Brasil, 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai no registro e isso é tratado com normalidade, me parece que não ser responsável pelos seus filhos é algo sistêmico, constante para homens e que mesmo com vários motivos que possam levar a isso, só é tão comum pois homens não são socialmente educados dentro dos padrões de gênero para assumir responsabilidades como a do CUIDADO como sendo de suas alçadas.
Não vejo isso no mesmo lugar, pois sinto das conhecidas que fizeram aborto um certo sentimento constante de dor em relação a isso, não vindo do arrependimento e sim da culpa que a sociedade coloca nas costas delas por escolherem suas prioridades quando sequer existia uma criança de fato. Essa culpa não existe para homens, que mesmo quando existe uma criança e ela tem um, três, sete, quinze, vinte anos, eles sequer passaram mais de uma semana ao seu lado e “tudo bem”, pois esses homens continuam lidando com isso com uma leveza que para mulheres não existe. Muitas vezes esses homens têm outros filhos e também abandonam. Ou criam eles com afeto e presença, mesmo sabendo que tem outro ou outros que ele não sabe nada sobre, nem se tem como comer e onde dormir.
Não vejo homens sentindo a mesma culpa que vejo mulheres sentir. Pois mulheres são julgadas só de pensar em não ter filhos, homens dificilmente são julgados por suas escolhas que impactam a vida de mulheres e crianças. Ser mulher é carregar consigo a culpa do mundo.
Por isso, sendo por 11 anos da minha vida uma dessas crianças sem o nome do pai, que depois ganhou o nome e aquele valor na conta por mês, mas sequer tem um “pai” que sabe a minha idade certa, minha cor preferida ou o que eu ando fazendo da vida, acho mesmo que não é comparável abortar e abandonar seus filhos.
Quando você aborta, não está sendo irresponsável e mantendo um ciclo violento de abusos e ausência. Você muitas vezes está optando por não fazer parte desse ciclo, por saber que não poderá ser mãe naquele momento, por saber que não terá o apoio naquele momento, por saber que se essa criança um dia vir a existir, a vida dela e a sua serão muito mais infelizes e de dependências, por saber que aquele não é o momento certo. Como já disse, existem diversos motivos para uma mulher abortar, mas me parece que sempre é muito mais uma questão que envolve um todo do que só e apenas seu desejo pessoal. Contudo, quando um pai vai embora, ele não só abre mão de ser pai, ele sobrecarrega uma mãe, ele agrediu uma criança e fere seu pleno desenvolvimento, ele pensa em si e não coletivamente.
Para mim, essa “diferença” diz muito sobre padrões de gênero distintos, educações distintas em que o único fator comum é que mulheres ocupam o lugar de vítima, mesmo quando sequer querem ser colocadas nesse local.