“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”
Assim escreveu Caetano, e assim cantou Gal, maravilhosamente. Essa é uma das frases mais lindas da MPB, e também uma das mais verdadeiras. É uma delícia ser quem se é, mas é também dolorido. Ser dói. E, em certos momentos da vida, dói tanto que você perde a visão de si mesma.
Aconteceu comigo, quer dizer, isso vinha acontecendo comigo há algum tempo – e eu passava por cima. Sempre acreditei que ninguém é feliz o tempo todo e a tristeza é necessária, então eu aceitava a minha tristeza. Um grande trauma aqui, uma doença ali, uma crise com o trabalho acolá, a morte de um amigo querido, mas eu seguia em frente tentando manter minha altivez. “Não preciso de terapia agora, eu lidei com tudo isso à minha maneira, está tudo bem”. “O que passei está superado, já se passaram anos, não há motivo para eu estar mal por causa dessas coisas”.
E a vida seguia, aos trancos e barrancos. Olhando para trás, agora, eu vejo que por algum tempo foram muitos trancos e barrancos, foram muitos tropeços na vida e em mim mesma. Eu estava no olho de um furacão sem ter a menor consciência de que estava naquele furacão.
Eu sou microempresária, tenho uma pequena escola de inglês. Eu cuido de todos os aspectos da empresa, de captação de novos clientes a coordenação dos professores e dos cursos, passando pela burocracia das (às vezes penosas) cobranças e pagamentos. Ah, e também dou aulas. Isso significa que sem mim não há clientes novos, nem pagamentos aos professores, nem pagamento para mim. Não estou sendo hiperbólica e nem tentando parecer a pessoa mais ~ocupadona~ do universo, estou apenas contando como é a minha realidade. Eu trabalho muito, muito mesmo.
Quando comecei a admitir para mim mesma que eu não estava bem, o que pesava mais era o meu trabalho. Será depressão? Como uma professora dá aulas com depressão? Minha cabeça borbulhava e minha vontade de fazer as coisas só diminuía. Comecei a ter crises de ansiedade no meio do dia, enquanto andava pela rua, e à noite eu tinha insônia. Muito trabalho, crises de ansiedade, cabeça que nunca descansava, insônia. Até que, numa sexta-feira, eu não quis levantar da cama. Fiquei horas chorando pensando que eu era um fardo para o mundo e aí eu vi que não me reconhecia mais. Quem era essa pessoa que fica na cama? Quem é essa aí que prefere ficar deitada sem fazer absolutamente nada? Não era eu. Eu sou forte. Eu sou uma rocha. Eu supero tudo.
E então eu vi que não tinha como continuar daquele jeito.
Comecei procurando o apoio do meu marido. Não sei o que teria sido de mim sem ele. Conversei com amigos bem próximos que sabem o que é depressão e, por causa das conversas que tive com eles e com meu marido, vi que eu realmente precisava de ajuda profissional.
Não foi uma decisão fácil – eu estava sem grana, e a essa altura eu já estava sentindo que nada faria diferença. Para alguém que sempre foi independente, que toca uma empresa sozinha, que sempre deu seu jeito, admitir que precisava de ajuda foi muito dolorido. Ao mesmo tempo que eu sabia que precisava de tratamento, eu pensava que isso é pra quem pode pagar, imagine, gastar com isso agora. E pra que eu vou lá ficar falando dos meus traumas, já falei deles com amigos, que diferença faz?
Quando eu comecei a me sentir apática eu percebi que não teria mais jeito. Tinha que fazer terapia. Procurei, pedi indicação, até chegar em uma que me ouviu por 5 sessões antes de pensar em combinar qualquer coisa. Eu me senti acolhida logo de cara, e vejo que isso é essencial para todo o processo.
Depois de quase dez meses me tratando eu digo com toda a sinceridade: terapia faz diferença sim. Conversar com amigos, com familiares, é essencial; mas, muitas vezes, a gente precisa de ajuda profissional pra colocar sentido nas coisas. Quando eu comecei a terapia eu achava que estava sendo peso na vida dos outros e na minha. Eu alternava a obrigação do trabalho com deitar no chão da sala sem ter forças pra me levantar. Eu não via graça em quase nada mais. Parecia que eu nunca ia melhorar. A terapia foi me ajudando a tirar meu “entulho” mental, a encaixar peças da minha história que estavam perdidas na minha cabeça, e, com isso, eu comecei a me sentir melhor. Bem pouco a pouco.
Meu relato é extremamente pessoal, longo, e não foi fácil escrevê-lo. No entanto, eu acho extremamente importante que a gente fale sobre depressão e ansiedade abertamente. São condições muito mal compreendidas – como você fala pro seu cliente que você não vai trabalhar porque só chora e não tem forças para levantar da cama? Não tem como. Mas temos que, pouco a pouco, quebrar esses tabus. Terapia é tratar da saúde. Tomar remédios para depressão ou ansiedade é uma questão de saúde. Não tem problema nenhum tomá-los desde que você faça acompanhamento. Eu tomo remédio pra dormir e seguirei tomando até quando achar necessário porque não quero nunca mais ficar duas semanas quase sem dormir, tendo crises no meio da noite. Não, chá de camomila não resolve em muitos casos.
Eu lembro do segundo semestre do ano passado e minha garganta fecha, toda vez. Toda vez eu fico mexida. Eu via o quanto as pessoas ao meu redor estavam preocupadas comigo. Eu via o meu marido fazendo de tudo para estar presente, me entender, e também me dar espaço. Também foi muito difícil para ele.
Eu estava num lugar muito ruim e escuro, não quero voltar pra lá. Foi dolorido sair. O tratamento dói, tem dias em que eu me irrito com a terapeuta, tem dias em que me irrito comigo, com o mundo, com a minha história; dias em que não quero pensar, eu só quero que reconheçam meu sofrimento. Mas eu sigo em frente porque é pra onde tenho que ir.
Nós temos que fazer muito, trabalhar muito, ser muito – a gente está, é, faz, quer. Eu só comecei a melhorar quando coloquei meu tratamento em primeiro lugar, e, consequentemente, me coloquei em primeiro lugar. Quando admiti que precisava de ajuda, e vi que isso não me faz fraca: na verdade me faz muito forte. Falei muitos nãos. Briguei também. Mas aos poucos eu vi que até as brigas que tive eram porque eu estava me reencontrando. Admitir que eu precisava de ajuda, e pedir ajuda foram as melhores coisas que fiz por mim.
Eu tento viver aos poucos. Quanto mais eu melhoro mais eu faço planos.
Comecei com Gal e termino também com ela. Uma das minhas frases de vida é daquela música que foi bem polêmica nos anos 80, “Vaca Profana”: respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada.
É assim que quero seguir. Com mais risadas do que lágrimas, mas sabendo que as lágrimas não estão ali por acaso.