Navegando Instagram afora, achei um perfil que postava a cada dia a foto de uma mulher e sua história. E só mulher PORRETA, mulher forte, que muda o mundo, que muda sua história, que cria seu próprio destino. Fiz contato com as autoras e elas gentilmente toparam contar de onde veio a ideia e o que elas pretendem fazer daqui pra frente. Marília Leonaldo é jornalista e escritora, tem 30 anos e mora em Santo André. Diandra Gomes Arbia tem 28 anos, é também jornalista e hoje atua com comunicação interna. Juntas, elas são #UmaMulherFodaPorDia e retomam nossa rodada de entrevistas com mulheres que têm planos, que vai sair semanalmente aqui no site.
Como nasceu o Uma Mulher Foda Por Dia?
Diandra: Há alguns meses estava conversando com um cara que admiro e que me inspira sempre e falávamos sobre propósito. Ele me perguntou “o que você escolheria fazer se dinheiro não fosse um problema?”. Pensei e a única coisa que concluí é que eu adoraria contar histórias, é a única coisa que sei fazer. Então comentei que meu sonho era ter sido a pessoa que criou o projeto Humans of New York, porque era totalmente algo que me via fazendo e me divertindo muito no processo. Ele me provocou e perguntou por que eu não fazia a minha própria versão daquilo, mas encontrando um diferencial que fosse só meu, que não parecesse uma cópia da ideia. Fiquei com isso na cabeça e passei meses formatando ideias, mas não segui em frente com nenhuma. Foi quando compartilhei um post sobre a Margareth Hamilton, uma mulher foda pra caramba que foi decisiva para mandar o homem à Lua. A Marília então comentou que a gente devia sempre postar exemplos maravilhosos como aquele, um por dia, pra inspirar as pessoas. E foi aí que me deu o estalo: era uma forma de contar histórias aliando a uma causa que eu acredito e milito diariamente, que é o feminismo. Tinha totalmente a minha cara, exatamente como o meu amigo tinha sugerido. Em menos de cinco minutos eu já tinha a página criada, convidei a Marília para embarcar nessa viagem comigo, ela topou na hora, já arranjou a conta no Instagram e combinamos que a cada dia uma de nós faria um post sobre alguma mulher incrível que nos inspire e que tenha potencial para inspirar outras pessoas.
Temos que mostrar que a mulher não apenas pode fazer o que quiser, mas pode também ser pioneira ou ter excelência no que quer que se proponha a fazer, assim como um homem. A gente sempre escuta falar de grandes homens da história, da ciência, do esporte, da política… Mas e as mulheres? Por que ninguém está falando delas?
A ideia é começar com essas mulheres que tiveram um papel legal na história e em áreas diferentes e, mais pra frente, quando já tivermos uma audiência mais estruturada, passarmos a dar voz a mulheres que hoje são anônimas, mas que são incríveis e inspiradoras do seu próprio jeito. Somos ambas jornalistas, então queremos aproveitar essa formação para fazer a diferença nas pessoas colocando o holofote em mulheres maravilhosas de quem nunca ouviu falar. E cruzamos com tantas, todos os dias! Alguém só precisa ter a coragem de contar a história delas.
Marilia: A Diandra postou sobre a Margaret Hamilton no Facebook e eu comentei que deveríamos postar uma por dia. Ela teve a ideia da página, me convidou, nós trabalhamos muito bem juntas desde a faculdade e o feminismo é um tema que me interessa, é um tema muito atual e muito controverso porque as pessoas não sabem o que é. Eu já conhecia o Humans of New York, também gosto muito do formato e espero que a gente chegue ao patamar de poder contar histórias de pessoas desconhecidas, afinal a maioria das mulheres de quem falamos são praticamente desconhecidas do público, ficaram escondidas.
Como vocês escolhem as mulheres que vão colocar ali? Há algum critério específico?
Marília: Tem que ser alguém que se destaque no que faz. Infelizmente se espera que a mulher atinja um nível muito alto de excelência para ser reconhecida e aí tentam atribuir a elas defeitos, como fria, ambiciosa, mandona. O critério mais direto é o de que ela tenha feito positivo, algo expressivo, até porque é assim que você reconhece uma pessoa. Eu não conhecia muitas das mulheres de quem falamos, elas estavam escondidas na história, perdidas entre os homens.
Diandra: Tentei me reeducar para ouvir e ler mais sobre mulheres. Somos muito acostumados a ouvir histórias de grandes homens. Então eu sempre procuro por alguém que foi além do ordinário, fez a diferença para muitas pessoas, teve grandes impactos, deixou uma marca e, principalmente, me inspire e mostre que posso fazer mais.
Eu tento reforçar valores e comportamentos que a sociedade tende a atribuir apenas a homens, pra mostrar que nada disso é exclusivo de um gênero e que a mulher pode ir até onde ela se propuser.
O que é ser uma mulher foda?
Marília: É ser alguém que pelos seus direitos, sonhos, que trabalha duro, de certa maneira toda mulher é foda apenas por ser mulher. Nós temos que superar desafios e preconceitos mesmo sem perceber, desde criança você lida com isso. Na maioria dos casos que contamos as mulheres não estavam pensando em serem as melhores ou no reconhecimento, elas estavam tentando melhorar as próprias vidas e dos outros, não visavam algum tipo de reconhecimento, até porque é recente a noção de que as mulheres são iguais aos homens, até o início do século passado lugar de mulher era em casa.
Ser foda é não aceitar os limites que nos impõem por ignorância, é lutar pela igualdade.
Diandra: Como a Marília falou, apenas por sermos mulheres já somos fodas. Digo isso porque penso em como a vida das mulheres é, historicamente, mais difícil que a dos homens apenas pelo gênero que representamos. Temos muitos privilégios negados e a sociedade está sempre esperando um determinado comportamento da gente que não cobra dos homens também. É muita coisa para se carregar. P
Pra mim, uma mulher foda também é alguém que tenha potencial para inspirar as demais pessoas. Não precisa ter uma grande invenção, basta ter influenciado e inspirado outras pessoas a serem a melhor versão de si mesmas.
Minha mãe mesmo é um exemplo pra mim, ela é muito foda, foi mãe solteira, não teve muitas oportunidades, toda vez que caiu, deu seu jeito de levantar, viajou o mundo, enfim. Ela não inventou a pólvora, fez o que milhares de mulheres fazem todos os dias, mas é muito foda à sua maneira. Tem muita coisa e gente no tempo inteiro nos dizendo o que não podemos fazer, é não, não, não o tempo todo, de todos os lados. Então uma mulher foda é aquela que desafia convenções, que escolhe ignorar os nãos que escuta e que faz o que sente que precisa fazer.
Dá pra ser uma mulher foda em tempos de extrema direita, com tantos bolsomitos, retrocessos e afins?
Diandra: É difícil ser mulher em qualquer época, mas quando a gente esbarra em gente querendo legislar sobre nossos direitos e corpos sem nos consultar ou em um país cuja Constituição nos define como um Estado laico, mas tem uma bancada religiosa fortíssima definindo os rumos da vida de milhões de mulheres usando a fé como embasamento é ainda mais difícil e, realmente, é nessa hora que a nossa resistência faz ainda mais a diferença.
É no escuro que as estrelas mais fortes brilham.
Marília: Nesse momento é que precisamos ser mais fodas, porque de novo teremos que lutar pelo direito de controlarmos nossos corpos, de termos opiniões, de sermos consideradas iguais. É decepcionante que no século XXI a gente ainda tenha que lutar para ser considerada igual a um homem, que você não possa decidir sobre controle de natalidade e aborto, por exemplo. E não é um fenômeno brasileiro, é no mundo, nos Estados Unidos, que têm uma legislação que permite o aborto, querem tirar até o acesso às pílulas anticoncepcionais, sem contar nos países extremamente religiosos que ainda praticam mutilação genital. Tem o exemplo da Rússia que aprovou uma lei que permite aos maridos agredirem fisicamente as esposas, tem a França que tentou barrar o burquini por considerar um radicalismo, uma forma de imposição àquelas mulheres, mas se usando também de uma imposição, impedindo a escolha.
A verdade é que para a mulher o conceito de escolha é considerado como uma dádiva que pode ser retirado quando não convém. Temos que lutar sempre e não apenas por nós, mas pelas que não tem voz.
Quais são as maiores dificuldades, as tretas que as mulheres foda encontram pela frente? lembram algum caso específico?
Marília: Sem surpresa, na maioria das vezes o maior problema são os homens.
Diandra: Hahahahaha, sim! Os homens adoram complicar o nosso lado, mas acho que o que mais me incomoda é quando a mulher é vítima do machismo e ela não se dá conta e perpetua um discurso que oprime ela mesma. No dia seguinte ao dia das mulheres também passei por um episódio complicado no Facebook com um amigo de infância que foi questionar meu post de 8/3 e que causou tanta confusão que o post teve mais de mil comentários de discussão pura e simples. Eu tive que ter muita paciência para tentar levar luz pra cabeça dele sem perder a razão. Ele não mudou muitas opiniões, mas hoje ele curte a nossa página!
Marília: Isso da reprodução do machismo é algo muito importante e prejudicial, teve esse caso da agressão no BBB e muitas mulheres apoiavam o cara porque a garota era chata, mimada, etc., então era uma prerrogativa dele agredí-la. E o que mais impressiona é como as mulheres se voltam com facilidade contra as outras, chamando de “vadia”, “puta”, degradando por causa do gênero.
Vocês já encontraram alguma mulher foda com historias relacionada à maternidade? Hoje a gente fala muito sobre ser mãe solo, sobre abandono paternal e alienação parental. Já rolou algum perfil de mulher foda que passou por isso?
Marília: O maior exemplo de mulher foda hoje é a que cria seus filhos sozinha por escolha ou pela situação. Hoje é muito comum, conheço muitas mulheres nessa situação de o pai não estar presente. A maioria das mulheres de que falamos são mães e mesmo que a gente acabe não focando no assunto da maternidade, é parte da vida delas. Um exemplo é a Mata Hari, ela perdeu a guarda dos filhos para o marido violento porque na época era assim. Tem também casos como a da Tamara de Lempicka, que colocou a filha em um colégio interno para poder levar a vida que queria.
Acho que uma das grandes liberdades de que a mulher precisa é a de poder lidar com a maternidade da sua própria maneira.
Diandra: O que mais tem são essas histórias, minha mãe e minha vó viveram isso, por exemplo. Minhas maiores referências de família na verdade são resultado dessas histórias complicadas. Para ser mãe e desempenhar esse papel é um pré-requisito ser foda. Normalmente a maior carga da criação dos filhos recai nos ombros da mãe, que não pode abortar, mas pode ter que ver o pai sair fora da responsabilidade ou mentir pro juiz pra só contribuir com R$100 para as necessidades do filho e ainda atrasar a pensão ou nunca aparecer para ficar com a criança, por exemplo.
A gente tenta lembrar que maternidade é só um dos papéis da vida da mulher, isso, claro, se ela escolher desempenhar. Por muito tempo a sociedade tentou reduzir o papel da mulher ao de esposa e mãe.
Mas com a página a gente tenta mostrar que somos e podemos ser muito mais do que isso se assim desejarmos, então em um momento em que todas as pressões estão na direção de obrigar a mulher a ser mãe, dificilmente você vai ver uma história na nossa página com o foco exclusivo na maternidade, e sim de alguém que fez algo diferente do que as pressões diziam. A gente pode, sim, querer ser profissional bem-sucedida, querer viajar o mundo sem amarras ou pode escolher não casar ou não ter filhos. Tudo gira em torno do direito de ter escolhas.
Tem algum site ou página que vocês indicam pra quem quer saber mais sobre mulheres foda?
Marília: Tem alguns Tumblrs, como o Cool Chicks From History, tem o Princesses, que é exclusivamente sobre princesas e rainhas, temos ideia, pela própria Disney, que ser princesa é tomar chá e esperar por um príncipe para te salvar, mas muitas rainhas e princesas interferiram diretamente na história, como a imperatriz Leopoldina, que ninguém sabe, mas foi quem declarou a independência do Brasil. As mulheres fodas estão por aí, para onde você olhar.
Diandra: sempre encontrei posts isolados sobre mulheres que entraram pra história, nunca um repositório sobre elas. Mas existem centenas de páginas e projetos feitos por mulheres incríveis. Tem a Revista Capitolina que é uma opção independente bem legal pra meninas, escrita por meninas que não se sentiam/viam representadas nas revistas adolescentes que existem hoje. Tem o Think Olga e o Não me Kahlo, que são bem conhecidos no FB.
Duas meninas fodas. Obrigada por isso.