Feche os olhos e tente se locomover pela sua casa. Tente fazer coisas simples do seu dia a dia. Abra uma gaveta e procure um caderno. Uma tesoura. Difícil, não? Agora feche os olhos e tente lutar. E ganhe. O que para uma pessoa com visão regular já é difícil, para a para-atleta Giulia Pereira dos Santos, de 16 anos, tem muito mais dificuldade, porém a judoca vem conquistando cada vez mais espaço e é uma das promessas para as Paralimpíadas de 2020.
Giulia é deficiente visual desde bebê. Nasceu de cinco meses de gestação, prematura extrema, e permaneceu na incubadora por mais quatro. Teve má formação no globo ocular. Ela tem apenas 10% de visão no olho direito e é completamente cega do olho esquerdo. Isso, porém, não é um empecilho para a garota.
Quem a vê andando pelo tatame é capaz de jurar que ela enxerga mais. É o que comento com ela. Ela ri e me diz que anda assim porque é teimosa, mas que não enxerga praticamente nada. As dificuldades, segundo ela, porém, não existem. Valente, diz que o que havia era medo de andar na rua sozinha, porém conta que a partir do momento que passou a estudar em Santos (SP) passou a aceitar sua deficiência visual e se tornou mais independente.
A judoca, que mora no Guarujá (SP), credita ao esporte a independência que tem para se locomover e para ter mais confiança em si mesma. “Eu não sei viver sem o judô, ele me proporcionou muita coisa boa. Viagens, grandes amigos. O esporte me ensinou a ganhar e a perder, é uma lição para a vida”, pontua.
O que antes era inimaginável, agora ela consegue fazer sem mais dramas. No ano passado ela foi para Natal (RN) sozinha para o Campeonato Brasileiro da Juventude e conseguiu vencer mais uma barreira de independência. “Meu pai não teve condições de ir, e fui sozinha. Foram seis dias. No começo foi um pouco estranho, porque eu não conhecia o lugar nem as pessoas, mas tive que me adaptar, então usava a bengala e depois que conhecia já conseguia andar sozinha, mas sempre com o apoio das pessoas, porque o deficiente visual sempre precisa de ajuda”.
Ela conta que nem sempre as pessoas são abertas ao deficiente visual, e que já chegou a sofrer preconceito de outros colegas em sala de aula, por exemplo, mas que hoje lida bem com isso. Que tenta se enturmar, mas que quando não é aceita, não fica triste. “Agora não choro mais, vou para pessoas que gostam de mim. São poucas, mas existem”.
Na escola, ela estuda em uma turma regular, mas como não enxerga a lousa, ela grava as aulas para ouvir e poder estudar, pois há um ano vem perdendo o pouco de visão que tinha. Conta, empolgada, que há quatro anos ela tentava uma vaga em uma escola especial e, agora, por meio do apoio de duas judocas olímpicas, conseguiu se matricular no Lar das Moças Cegas, um centro de educação e reabilitação onde pessoas com deficiência visual aprendem formas de serem mais independentes, como cursos de braile, gastronomia, autonomia para se organizarem dentro de casa, esportes, música e outras atividades. Giulia já sonha em levar o judô para a instituição.
JUDÔ
A judoca começou no esporte em 2012, por incentivo do pai, que contou para ela que havia uma atleta olímpica com deficiência visual, e ela se interessou. “A partir do momento que pisei no tatame, sempre quis mais, sempre quis evoluir e sempre busquei o melhor”. Ela começou a treinar no judô regular, onde obteve títulos como o terceiro lugar no Campeonato Regional Paulista, e só em 2014 conheceu o judô paralímpico. Rotineiramente ela treina com judocas regulares, uma vez que na academia dela não há nenhum judoca paralímpico.
Já na categoria especial, no primeiro Grand Prix conquistou a medalha de bronze na categoria adulto, foi campeã brasileira em Natal, e campeã Paulista nos 52 quilos. Agora ela luta por uma vaga titular para as Paralimpíadas de 2020.
Os treinos com judocas paralímpicos, como o tetracampeão Antonio Tenório, exemplo para ela, são realizados em São Paulo. Esses, ela considera mais fáceis, por colocá-la em igualdade com outros atletas, na sua categoria.
O judoca português olímpico Pedro Dias, que ministrou um treino em abril, em Maringá (PR), do qual Giulia participou, atesta a capacidade da garota. Segundo ele, que conheceu a Giulia em uma graduação por meio da judoca Fabiane Okuda, o potencial está latente. “Só depende dela conseguir atingir seus objetivos”.
Para treinar, Giulia enfrenta uma maratona. Ela vai do Guarujá para Santos todos os dias. Para isso, sai de casa às 16 horas e chega de volta às 23 horas. Conta que não perde um treino, pois tem uma meta e não se desvia dela por nada.
LUTA
Observar uma luta de Giulia é um momento emocionante. A atleta é conduzida até o centro do tatame e começa a lutar já segurando o “quimono” do adversário e vice-versa. A judoca disse que como não enxerga o que o adversário vai fazer, precisa ficar atenta ao movimento. Sentir se ele se move para puxar, empurrar. Assim ela se antecipa para dar os golpes. E que golpes.
Durante o treino em Maringá foram cinco lutas de Giulia. Ela ganhou todas. Como mera observadora achei que poderia ser mais complicado lutar com atletas regulares. Giulia não se intimidou, porém. Técnicas certas e bem aplicadas garantiram que ela vencesse todas as adversárias e deixasse todo mundo com olhar de espanto na plateia.
O grito junto ao golpe de misericórdia soou como uma libertação, uma vitória dela sobre si mesma, acima de tudo. Vencer as próprias limitações, afinal, deveria ser a busca de todo mundo. O adversário é só um estímulo a mais. E no caso de Giulia, ela luta com o adversário com garra e categoria.