Por Daniela Beneti e Ruh Dias
Para começar 2016 com grande impacto, a Rede Globo investiu pesado em uma minissérie de 10 capítulos, Ligações Perigosas. Baseada no clássico do francês Chordelos de Laclos, a produção transportou a história do século 18, na França pré-revolução, para o Brasil do início do século 20.
Ligações Perigosas foi publicado, originalmente, em 1782 e causou muita polêmica na ocasião. Isto porque o enredo, pautado em intrigas e traições da alta nobreza francesa, chocou a sociedade. Em um contexto histórico onde somente os ricos e nobres tinham acesso à literatura, caiu nas mãos exatamente deles uma crítica contundente ao seu modo de vida. Além disso, o livro não se atinha aos fatos e, sim, aos pensamentos e sentimentos das personagens, ressaltando ainda mais sua devassidão e amoralidade. A nobreza, então, não poderia defender-se dizendo “não cometo atos imorais”, pois o livro fala de uma camada mais profunda e esta ninguém poderia garantir, com certeza, que não possuía.
Famosa por seu enredo de manipulação e vingança, Ligações já foi adaptada 11 vezes para o cinema, sendo uma das adaptações o filme de mesmo nome de 1989 ganhador de 3 Oscars, com Glenn Close, John Malkovick, Michelle Pfeiffer, Uma Thurman e Keanu Reeves nos papéis principais.
Aqui, a trama conta com Patrícia Pillar e Selton Mello como a dupla de sedutores, mas mantém a essência no romance epistolar (feito por meio de troca de cartas): Isabel (Marquesa de Merteuil, no original), é uma rica viúva que leva uma vida dupla: considerada um modelo de comportamento e virtude, na intimidade coleciona amantes e se diverte com o jogo da sedução. Passatempo esse que ela compartilha com seu amigo (e ex-amante) de longa data, o don juan Augusto (Visconde de Valmont). Ao descobrir que seu amante atual a trocou para se casar com a filha virginal de sua prima, Cecília, Isabel exige que Augusto seduza e tire a virgindade da menina.
Augusto está mais interessado em seduzir e desonrar Mariana (Madame de Tourvel na obra), mulher casada, fiel e muito religiosa. Ao descobrir que a mãe de Cecília está prevenindo Mariana contra suas investidas, Augusto aceita a proposta de Isabel e ainda aposta que conseguirá seduzir a beata, tendo isso registrado em cartas. O prêmio seria uma inesquecível noite com Isabel.
A partir disso, os dois envolvem as duas e mais o jovem professor de música de Cecília, Felipe (Danceny), em uma trama de manipulação que culmina na aproximação de Augusto com Cecília sob o pretexto de levar cartas de Felipe. É nesse momento que acontece a cena que rendeu tantos protestos nas redes – Augusto entra no quarto da menina para supostamente levar uma carta e estupra Cecília.
Sim, a cena existe no livro e é narrada (sem detalhes) em cartas de Valmont e Cecille para a Marquesa. Mas existe ali um tom dúbio, já que Cecille se sente culpada e acha que “não resistiu o suficiente”. Esse talvez seja o ponto mais pernicioso de Valmont. Ele não apenas força Cecília, mas faz com que ela acredite que a culpa é dela e pior, faz com que ela aceite novas visitas.
No livro, há uma série de cartas girando em torno do tema do sexo. Naquela época – lembrem-se, 1782 – falar sobre este assunto assim abertamente era quebrar uma série de tabus. Daí, a cena de estupro não é gráfica, tampouco descontextualizada. Foi uma forma do autor do livro enfatizar, ainda mais, a decadência e a podridão existente na nobreza francesa. A cena, em si, é inofensiva em sua descrição, mas corrobora com a agressão à sociedade que o autor queria fazer. Esta particularidade da função da cena perdeu-se quando transposta para a série, devido ao veículo (televisão, minissérie) e, principalmente, porque são outros tempos.
Outro aspecto que deixou as redes em polvorosa foi a chamada e descrição da Globo para a cena, que seria o momento em que “Jovem cede às investidas do bon vivant, que tem êxito na aposta com Isabel”. Além disso, o final da cena daria a entender que Cecília começa a gostar do ato. A forma como a cena foi anunciada e mostrada acaba colocando Cecília no clichê do “não que não era não” e da mulher “que só não sabia o que era bom”. Em muitos aspectos, o público acusou a emissora de romantizar um estupro.
Se o estupro é chocante, a história de Cecília mostra que isso é parte de algo maior, o encontro da jovem ainda inocente com um homem manipulador, dominador e violento, que se esconde sob a fachada de um conquistador irresistível. Parece familiar? Valmont e Cristian Grey teriam muito o que conversar, a diferença é que o autor de Ligações não faz de Valmont um homem apaixonado por Cecília. Ao ler a obra, sabemos que suas ações são motivadas por pura vaidade e egocentrismo. Valmont aparece para nós, em suas cartas para a Marquesa, como realmente é: um homem fútil, dominador e sem escrúpulos, que se diverte em distorcer a visão de Cecília a ponto dela achar que toda a situação foi causada por ela.
Um paralelo importante a ser feito é que, há não muito tempo atrás, temos o sucesso estrondoso da obra “Cinquenta Tons de Cinza”, de E. L. James, onde o protagonista – endeusado por muitas mulheres – pratica uma série de abusos psicológicos e emocionais em seu par romântico, Anastácia. O Plano Feminino falou sobre esta misoginia neste artigo. Parece que nem mesmo a nossa sociedade ainda definiu quais são os limites do aceitável e do não-aceitável, o que faz com que o nosso debate seja ainda mais importante.
Quantos relacionamentos nocivos assim acontecem ainda hoje, todos os dias? E quando um homem com esse perfil deixou de ser o monstro manipulador e se tornou o novo príncipe encantado literário?
Há algo importante na indignação da cena de Augusto e Cecília – a de que boa parte do público não aceita mais ver coerção como sedução.