Por Danielle Cassita*
Quantas vezes houve personagens femininas liderando uma série? Poucas, possivelmente, se levarmos em conta a imensidão existente dessas produções.
A Netflix ajudou a dar um ar mais otimista a esse quadro com Jessica Jones, heroína da Marvel. Na história, Jessica é traumatizada por um relacionamento abusivo que teve com o vilão Kilgrave, e segue seus dias tentando superar os fantasmas de seu passado e simplesmente levar uma vida mais tranquila sem depender tanto de seus poderes. Ela passa a trabalhar como investigadora em Nova York, mas os clientes que lhe aparecem logo a ligam de volta a Kilgrave.
Com 13 episódios, a série se inicia sem muito ritmo – o que é aceitável, uma vez que a personagem não é conhecida pelo público e, portanto, é necessário apresentá-la. E isso é feito de um ótimo jeito: Jessica é mostrada de forma crua, simplesmente como ela é e sem dever desculpas a ninguém por isso. Sarcástica quando acha que tem que ser e com um hábito regular de bebidas alcoólicas, Jones vive um tanto acuada – embora tente ocultar isso o máximo possível – quando se lembra das feridas emocionais e psicológicas que Kilgrave deixou.
Ao analisar os ocorridos, fica claro que Jessica foi a vítima de um relacionamento abusivo. Sob o controle de Kilgrave, ela cometeu diversos atos sem consentimento, e só consegue se libertar após um acontecimento específico também contra sua vontade. Em determinado momento, ela quando confronta o vilão e deixa claro que nunca quis nada daquilo e grita que ele a estuprou. Ele acha estranho e… Bem, não aceita. Oras, depois de levá-la restaurantes caros, comprar presentes e mantê-la por perto ela ainda o chama de estuprador?
Outro ponto importante que a série questiona é a credibilidade da vítima. Não são poucas as vezes que Jessica tenta alertar as pessoas à sua volta do perigo do vilão, mas ninguém acredita nela – nem mesmo sua advogada.
Nos episódios finais, após os poderes dele envolverem inocentes, Jessica vai para um último confronto como merece: regenerada, firme e forte, com autoestima e confiança. Ela não hesita em momento algum. E o mais importante: também não é mais controlada por ele e por mais ninguém.
Lidando de forma respeitosa com um tema tão delicado, a Netflix com certeza acertou em cheio ao produzir a série para seus milhões de assinantes.
A autora Tess Gerristen teve grande êxito ao retratar também as consequências do abuso sexual em “O Cirurgião”. O livro leva o nome devido a um serial killer que, além de sequestrar e torturar mulheres, remove um órgão específico com uma precisão que apenas médicos possuem.
Na história, a dra. Catherine Cordell foi vítima do criminoso. Ele a estuprou e destruiu sua integridade, de modo que, como Jessica, a médica seguiu seus dias sempre acuada, com medo do menor ruído, pondo trancas extras nas fechaduras de sua casa e temendo qualquer pessoa que se aproximasse demais – inclusive homens. Ela mal consegue falar sobre o assunto. Quer fugir, mas sabe que não pode. Quer chorar, mas engole.
Já citada, a culpabilização da vítima costuma estar presente quando se trata de abusos, e a autora não hesita em mostrar isso:
“As mulheres são assim – Olhou diretamente para Moore. – Culpamos a nós mesmas por tudo, mesmo quando o homem nos fode sem o nosso consentimento.”
Por se tratar de um assassino, o livro traz o cenário das investigações policiais que, geralmente, são lideradas e compostas por homens. Afinal, mesmo na literatura, é comum lembrar de nomes masculinos como o célebre Hercule Poirot, de Agatha Christie. Isso não acontece aqui: há uma mulher trabalhando junto dos policiais, a detetive Jane Rizzolli. A investigadora está ciente de trabalhar num ambiente que é voltado para homens, e enfrenta seus colegas constantemente apenas para ser tão reconhecida quanto eles. É extremamente interessante como a personagem está ciente disso:
“Vocês homens podem concentrar toda sua atenção no caso e nas provas. Mas eu gasto muito tempo e energias tentando fazer com que me ouçam.”
Não são poucas as vezes em que, mesmo tendo opiniões tão coerentes e corretas quanto as dos outros colegas, as mulheres e suas ideias ficam em segundo plano em relação às de seus colegas homens.
A representação é necessária e, mais do que nunca, está tendo sua presença nas produções que atingem diversas quantidades de pessoas. Claro que nenhuma obra pode ser considerada plenamente perfeita: afinal, a série poderia ter momentos mais ágeis que com certeza agradariam mais quem assiste. Já o livro, talvez cenas menos técnicas, uma vez que a autora usa diversas vezes termos de sua formação. Porém, esses defeitos são superados com facilidade quando a preocupação é voltada para a causa maior que envolve ambas as histórias.
*Danielle Cassita integra o Grupo de Pesquisa Estética e Crítica Cultural da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru.