VAGINAS. V-A-G-I-N-A-S. Assim, no plural, como deveria ser sempre afinal, não existe um “modelo” de vagina; cada uma certamente é exemplar único. Contudo, numa realidade onde VAGINAS são ainda escondidas por nós, que a temos, e pela sociedade em geral, ao contrário de pênis, que aparecem em todos os lugares, desde pichações em muros até nos discursos acalorados, falar de nossas VAGINAS publicamente pode ser considerado um ato político.
Não à toa, essa conversa remete à minha infância, quando eu nem sabia nomear o “elemento” no meio das pernas, mas que minha avó me ensinava em tom de piada a chamá-la de “perseguida”. Não parece haver nome melhor para definir essa parte do nosso corpo, ainda perseguida pela santa inquisição da “moral e dos bons costumes” misóginos. Da forma como fui criada, parecia que ter vagina era um fato vergonhoso:
Esconde isso.
Não fala disso.
Não toca nela!
Para um número considerável de mulheres, essa é uma história comum. Não é motivo de espanto, consequentemente, parece sempre haver algo errado com a nossa vagina — se odiar é um processo importante para manutenção dessa sociedade doente, onde o repúdio de tudo que está associado à mulher ou ao feminino é uma constante. Nos ensinam desde muito cedo que tocar nas nossas vaginas é feio, enquanto alguns que têm pênis crescem fazendo campeonatos de ejaculação mesmo em espaços públicos sem serem repreendidos.
Na puberdade, dizem que nossas vaginas cheiram mal e que deveríamos dar “um jeito nisso” se quisermos ter “namoradinhos”. Depois nos repreendem caso queiramos falar sobre nossas vaginas entre nós. Numa cultura do estupro, falar de vagina pode até ser entendido como “provocação”. Por fim, quando menstruamos, o nosso sangue é visto como nojento, mesmo sendo fruto de um processo natural. Até bolsinhas para esconder absorventes são vendidas como estratégia de acobertar essa manifestação corriqueira.
Uso de ácidos para clarear vaginas.
Esses exemplos, aliados a outros fatores derivados de uma sociedade machista, transformam nossas vaginas e nossa sexualidade em sinônimos de monstruosidade. As questões inerentes ao sexo feminino passam a ser consideradas indignas de serem entendidas e tratadas com a devida naturalidade e são rapidamente colocadas na caixinha dos tabus. Vaginas só servem para agradar os outros, contanto que elas sigam determinados padrões.
Ao tirar essa pauta da zona de assuntos-que-não-devem-ser-falados, é possível notar uma série de consequências negativas advindas dessa cultura de repulsa e horror a vaginas. Só no ano de 2014, 15 mil mulheres passaram por procedimentos cirúrgicos pra mudar a aparência de suas vaginas. Um dos principais fatores que levam mulheres brasileiras a consultórios para procedimentos estéticos vaginais é o fato de considerarem as regiões íntimas escuras. As alternativas mais comuns utilizadas para modificar o aspecto estético das vaginas são lasers e ácidos. A aplicação do “peeling genital e anal”, combinação dos ácidos retinóico, mandélico e glicólico capaz de promover a despigmentação de toda a região íntima, inclusive do próprio ânus, vem se tornando um procedimento cada vez mais comum nas clínicas de estéticas e consultórios médicos.
Experiências pessoais
Quando ainda estava na universidade, me envolvi com um rapaz que não demorou em deixar claro sentir repulsa em fazer sexo oral em mim, por se sentir enojado. Quando falei disso com outras mulheres, alguns relatos me fizeram perceber que a questão não era pessoal, era social:
“Eu sinto vergonha sim da minha vagina, na verdade da cor dela. Ela é escura. Isso me constrange tanto. Tempos atrás (2014, se não me engano) me relacionei com um cara branco, passei meses com ele. Mas ele não queria nada comigo, inclusive fazer sexo oral. Ele dizia que não gostava e eu me questionava sobre aquilo, olhava pra minha vagina e me culpava. Ele ainda chegou a dizer que nunca tinha ficado com alguém como eu. Na hora eu não soube o que dizer, veio muita coisa na cabeça. Depois de um tempo vi que ele nunca ia me assumir, e aí decidi partir. Nunca mais quis sair com ele. Já havia me apegado, mas sempre lembrava do que ele falou e do que ele não “gostava” de fazer. Hoje, estou tentando melhorar essa relação com minha vagina. Mas ainda é difícil, tenho vergonha.”
Uma outra mulher me relatou que ficou doente após ter tanta repulsa da própria vagina que parou de tocá-la até mesmo para higiene básica:
“Meus ex-parceiros comentavam que eu era escura na vagina, sabe? Que não era rosa, que o cheiro de vagina negra era “diferente”. Até que o meu ex-namorado me traiu com uma moça branca e eu caí na besteira de ir ler as conversas que eles trocavam, e vi q ele elogiava muito a pele dela, como ela ficava bem de batom rosa porque combinava com a pele branquinha, como o cheiro dela lá embaixo era doce. Aí eu parei de me olhar. Fiquei doente e levei uma bronca da médica porque eu não estava me lavando direito, mas é porque eu não tinha coragem de ficar me encarando, sabe? De olhar direito tudo preto ali.”
Precisamos falar sobre isso.
Mesmo que metade da população do mundo tenha vagina, é muito absurdo pensar que é comum existir mulheres se negando a viver determinados tipos de troca e prazer, por vergonha de algo que deveria ser tratado com naturalidade. Mas, principalmente nós, que temos vaginas, que somos impedidas de fazer delas o foco do nosso interesse e prazer. Por incrível que pareça é de nós que a sociedade mais quer afastar o conhecimento e a discussão sobre essa, que é não é só mais uma parte do nosso corpo, mas a porta para discussões como a da sexualidade e até mesmo direitos reprodutivos. Então, até quando nos negaremos a falar sobre elas? Nos negaremos ao prazer, com vergonha de nossas vaginas? Da sua cor? Do seu cheiro? Da sua forma?
Por anos homens discutiram sobre nossa vagina, atribuíram inclusive a ela o sentido de ser um “pênis incompleto”. Evidentemente, existe por trás desse fato a tentativa de menosprezar e nos controlar. O medo de que tenhamos o controle do nosso corpo é um medo social, que aderimos sem sequer questionar que a repulsa as nossas vaginas, impede nossa emancipação. E no que diz respeito a mulheres negras, a história evidentemente só piora, já que a ginecologia moderna fez dos nossos corpos o objeto de estudos literalmente.
O médico americano James Marion Sims, conhecido por desenvolver a cura cirúrgica para a fístula vesico-vaginal, usava para seus estudos três escravas negras: Anarcha, Lucy e Betsy. Mulheres negras que passaram por dezenas de cirurgias cada uma, sem sequer ter acesso a anestesia, já que elas, por serem negras, eram vistas como mais “fortes”, e nesse mito criado pelo racismo científico, tiveram seus corpos operados sem que sequer fosse considerada a sua dor física.
Sendo assim, para nós, negras, a ginecologia foi sendo traçada como tortura e não como cuidado. Eu acredito que nossos corpos carregam memórias, e que assim como corpos inteiros, negras têm a sua vagina associada a dor. Corpos de médicos que lidam com nossas vaginas têm sua mente e atitudes moldados pelo racismo científico, que acreditam na falácia que sentimos menos dor, que aguentamos mais e que não precisamos dos mesmos cuidados dados para as pessoas brancas. O comportamento que ginecologistas tem para conosco ao se mostrarem muitas vezes com descaso, já deixa muito claro que nossas vaginas “escuras” carregam uma outra simbologia nessa sociedade: são associadas de uma forma racista e violenta ao nojo e a sujeira.
Então o que fazer com nossas vaginas?
Não há para mim na atualidade, nada mais violento e torturador que saber que mulheres, muitas delas negras, buscam passar ácidos e até mesmo suco de limão em suas vaginas buscando estar dentro de um parâmetro de beleza, muitas vezes por cobrança dos próprios parceiros. Nós, enquanto sociedade, ao invés de dizer que vaginas são vaginas, estamos num processo de PATOLOGIZAR VAGINAS, e quanto a nós, negras, ainda existe a ideia de que temos que estar num padrão de beleza branco também no que diz respeito às nossas partes intimas.
Uma urgência é nos reconectarmos com nosso corpo para entender que esse processo de patologizar nossas vaginas é fruto de uma lógica de mercantilizar nossos corpos e vidas. Mas, mesmo as mulheres feministas, aparentemente se negam a falar de suas vaginas sem ser de forma pejorativa, iniciando um diálogo mais aberto consigo mesmas, com nossas semelhantes e com nosso corpo, para que vaginas não sejam mais alvo de violências e mutilações, escondidas por trás das supostas “opiniões” e dos supostos “tratamentos” que nos são vendidos.
A pergunta que fica é: Você se sente a vontade com essa parte do seu corpo, a ponto de querer falar dela abertamente? Pergunto, sem receber resposta, pois mesmo para mim falar disso nesse texto não foi tarefa fácil. Mas é um exercício constante, e escrever faz parte do processo.