Juntamente com a despedida de Game Of Thrones e da primeira fase d’Os Vingadores, acontece um movimento de transição dos espectadores de entretenimento cinematográfico e televisivo: do escapismo fantasioso para a dura (muito dura mesmo) realidade. 

 

Há dois anos nem os críticos mais especializados apostariam que a audiência da HBO em 2019 estaria nas mãos de Craig Mazi, produtor da série limitada Chernobyl. Naquele ano, 2017, a emissora anunciou que a oitava e última temporada de Game Of Thrones levaria um ano inteiro para ficar pronta e os fãs da então série mais baixada (e pirateada) do mundo começavam a reclamar de ansiedade.  

 

Claro que Game of Thrones também nunca foi muito fácil de assistir. Mas, no fim do dia (ou do episódio), ainda existia a ciência de que Westeros – o reino que ambienta a história da guerra pelo Trono de Ferro – é um lugar inventado, fruto da imaginação do autor George R.R Martin, onde dragões são tão reais quanto zumbis de gelo – e saber disso poderia dar um conforto para quem o buscava. 

 

Não é o caso de Chernobyl, que narra o acidente na usina nuclear da Ucrânia, em 1986 com precisão histórica, baseando-se no livro As Vozes de Chernobyl e em muita pesquisa por parte dos roteiristas. 

 

Reprodução: HBO

 

Esta história já foi contada muitas outras vezes em muitos outros formatos. Dos livros de história, a filmes de ficção, que usam o acidente como gancho para histórias fantasiosas, sem falar em dezenas e dezenas de documentários. Mas a entrega da HBO é diferenciada. Além da precisão histórica, há também grandes atuações, roteiro forte e bem escrito, fotografia e reprodução de cenário impecáveis. É uma séria feita com muito cuidado e profissionalismo. Em outras palavras: tudo o que a temporada final de Game Of Thrones não demonstrou para os fãs. E assim, Chernobyl se tornou a série de maior pontuação no IMDb (a maior base de dados do mundo a respeito de audiovisual) atualmente, tendo ultrapassado, além da própria GOT, também Breaking Bad, outro grande clássico da ficção. 

 

A genialidade desse formato, quando bem executado, é como ele carrega um trabalho tradicional de documentários, um setor do cinema que chega a beirar o jornalismo, para a dramatização merecidas para histórias tão impressionantes como a de Chernobyl e as pessoas que vivenciaram o acidente. Ao mesmo tempo que se narra tudo de um jeito curto e direto ao ponto. Não é preciso exageros, o drama já existe na história. 

 

Olhos que Condenam, é uma série bem executada neste formato. Talvez por isso, se tornou o título mais assistido da Netflix desde sua estreia, no dia 31 de maio. Dirigida e roteirizada por Ava Duvernay (Selma: uma luta pela igualdade e Décima Terceira Emenda), a série, também limitada, narra uma história não muito distante dos acontecimentos em Chernobyl: o é 1989 e cinco adolescentes negros e hispânicos, de 14 a 16 anos e moradores do Harlem, em Nova York, são acusados erroneamente pelo crime de estupro coletivo de uma jovem corredora branca, encontrada a beira da morte no Central Park.

 

Reprodução: Netflix

 

Mesmo que nenhuma prova ou evidência apontasse para Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana e Korey Wise, o olhar racista do da polícia, da promotoria, do juri e da sociedade condenou as crianças. 

 

Os quatro episódios de “Olhos que Condenam” acompanha os cinco desde a noite do crime, até a exoneração, em 2002, após a confissão do verdadeiro agressor – que teve mais pena dos acusados do que a justiça americana. Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam e Raymond Santana serviram penas de seis a sete anos. Korey Wise, o único julgado como adulto, ficou preso por 13 anos em penitenciárias de segurança máxima e tem sua história centralizada no último e mais duro episódio da série. 

 

Para narrar cada uma das histórias, Ava não censurou nenhum elemento que faça parte delas. Violência policial (mesmo contra meninos indefesos), doméstica, carcerária. Todas as dificuldades que os cinco enfrentaram quando saíram da prisão já homens feitos, com suas juventudes sugadas por um sistema violento, assim como suas oportunidades de emprego e de construir uma vida digna. Tudo explícito.

 

Ainda que a realidade seja dura, Ava entrega Olhos que Condenam com uma cinematografia igualmente poética a de Chernobyl (até mais, eu diria). 

 

Mas porque assistimos a desgraças reais? 

 

As “embalagens” visualmente bonitas que Chernobyl e Olhos que Condenam usam para narrar suas histórias, não esconder os horrores da realidade. Ao se dispor a ver estas séries, você ainda será impactado por soldados e bombeiros soviéticos morrendo de maneira torturante por causa de um governo que não se preocupou com sua população ou um adolescente negro sendo espancado dentro de uma penitênciaria que ele nem deveria estar frequentando. 

 

Os sentimentos de raiva, frustração, ansiedade e tristeza – muita tristeza – são reações comuns diante das duas narrativas. Por experiência própria, como mulher negra, posso dizer que, de maneira alguma, considerei Olhos que Condenam um entretenimento, ou algo para se assistir no meu tempo livre. 

 

Este exercício, para mim, exigiu um tempo de preparação que nem mesmo adiantou, principalmente no último episódio, quando precisei pausar por diversas vezes e lutar para não desistir de assistir. 

 

Por isso, nem sei se o termo “masoquismo” é o correto para descrever esta insistência minha e de muitos espectadores, segundo os dados que já citei aqui, em colaborar para estas produções, mantendo a audiência até o fim de seus episódios torturantes. Masoquismo é um termo usado para uma pessoa que sente prazer na dor, seja física ou psicológica. E nem mesmo as qualidades técnicas dessas duas séries provocam sensações de prazer para quem assiste.

 

Mas como mais eu poderia descrever esta necessidade que a nossa sociedade ainda tem de entender histórias que foram antes negligenciadas e até ocultadas no passado? Principalmente quando, tais histórias, ainda têm efeitos nos dias atuais. 

 

Apesar das duas séries serem genuinamente educacionais sobre história recente, elas também deixam pontas soltas que resultam em problemas atuais e que podemos ter no futuro. 

 

Chernobyl e as cidades em torno seguem inabitáveis, mesmo depois de mais de trinta anos do acidente. Crianças da época sofrem efeitos colaterais ainda hoje, famílias que perderam familiares ainda não foram indenizadas. Isso sem contar com a dissolução da União Soviética em 1991, claramente causada pelo acidente de 1986. Ao redor do mundo, usinas nucleares ainda operam com administrações abusivas e viciadas em produção para lucros. 

 

Quanto a Olhos que Condenam, a dificuldade de assistir poderia estar na reflexão do que outras gerações de homens e mulheres negras tiveram que passar para melhorar o mundo para as gerações atuais. Para a minha geração, por exemplo. 

 

Mas o meu choro durante a série é por saber que a violência policial e o racismo jurídico e carcerários ainda existem. Os Estados Unidos elegeram um homem que pediu a execução dos jovens acusados. Mas também não estamos a salvo no Brasil. Em 1989, foram os cinco meninos no Central Park, em 2013, Rafael Braga. A cada minuto, tantos outros. Amanhã, pode ser eu. 

 

Que essas audiência que Chernobyl e Olhos que Condenam estão ganhando passem então do que estou chamando aqui de masoquismo e sejam entendimento, educação e, principalmente, inspirações para descobrir como resolver tais problemas

 

 

 

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