por Marina Arruda

 

Faz pouco mais de dois anos que fui diagnosticada com câncer de mama. Foi o maior susto que tomei na vida e também o maior medo que já senti. Nada indicava que isso poderia ocorrer; portanto, eu vivia sem preocupações nesse sentido. Muita coisa mudou desde então.

Não só porque agora precisarei monitorar minha saúde por tempo indeterminado, mesmo estando curada – segundo apontam os exames e afirmam os médicos –, mas porque a transformação que essa experiência complexa desencadeou em mim foi muito profunda e não cessa.

Fui diagnosticada aos 31 anos de idade, relativamente jovem, tendo em vista que o exame mais empregado para detectar essa doença, a mamografia, é exigido no geral a mulheres a partir dos 40 anos.

Eu havia acabado de tomar banho e foi me vestindo que senti um nódulo. E, por incrível que pareça, era bem grande, palpável. Eu nunca havia sentido nada – não foi algo que notei quando pequeno e, por não ter minha atenção, foi se desenvolvendo. Na primeira vez que o percebi, ele já era grande. Depois, feito o ultrassom, soube que tinha cerca de dois centímetros e meio.

Um nódulo relativamente grande se comparado ao tamanho da mama, e numa posição fácil de ser notada, mas não o notei antes. Isso só nos fez supor que seu crescimento foi muito rápido, embora não saibamos por quanto tempo as células cancerígenas estavam se multiplicando em meu organismo até que pudessem consolidar esse tumor.

Logo que pude, visitei minha ginecologista e, como é usual, ela solicitou um ultrassom, mas não trabalhou inicialmente com a hipótese de câncer. Pensávamos em algum cisto, algo do tipo. Já na realização do ultrassom o comportamento do médico não me deixou muito tranquila. Ele me alertou para o fato de ser um nódulo vascularizado, o que já descartava, segundo ele, a possibilidade de ser um cisto.

Com o resultado desse ultrassom em mãos, retornei à médica, que concluiu realmente não ser um cisto e solicitou outro exame mais aprofundado – uma biópsia com agulha fina. Quando o processo se dá pelo convênio médico, até que os exames sejam agendados e realizados, os resultados fiquem disponíveis e ocorra o retorno aos médicos que os interpretarão, o desdobramento costuma ser lento, e a constatação, demorada. Esse foi o meu caso.

Apesar de ter percebido o nódulo em setembro, foi somente em dezembro que fui efetivamente diagnosticada. O resultado da biópsia, feita em outra cidade, foi enviado por e-mail, e, para aumentar meu desespero, acessei-o de casa, sozinha. Não consegui resistir à ansiedade, ainda não sabia quando encontraria novamente a médica que acompanhava o caso.

 

 

Não havia alertado meus familiares, porque trabalhávamos com a melhor das hipóteses, a de ser uma formação fibrosa benigna. Não tenho tendências hipocondríacas, não sou de ficar doente e sempre tive uma boa resistência à dor. Brinco que, tirando esse episódio isolado que foi o câncer em minha vida, sempre tive uma saúde impecável. Minha família praticamente não sabia que eu investigava isso, a não ser minha mãe, que me acompanhou na biópsia.

Mesmo que a expressão dos médicos que efetuaram o procedimento também não tenha sido das melhores – o que contribuiu para aumentar minha preocupação –, eu não estava certa de que era isso, não podia crer na pior das alternativas. Mas foi então que li no exame: “Quadro citológico compatível com neoplasia epitelial infiltrante com características de carcinoma ductal invasivo”.

 

Aquilo foi muito para mim. A conclusão foi muito técnica, embora sentisse que se referia ao câncer de mama, não queria admitir essa ideia nos primeiros instantes. Fiz ainda mais: busquei na internet e, como não poderia ser diferente, tive a confirmação de que carcinoma era sinônimo de câncer.

 

Foram alguns segundos de suspensão total. Nada passou pela minha cabeça, como se eu tivesse sido desligada da tomada, e o corpo parecia dormente. Não pensei em nada, vivi o choque que essa nova informação causou em mim, nos meus sentidos, na minha propriocepção.

Mas essa sensação durou pouquíssimos segundos, pois, mais que depressa, minha mente passou a agir. A racionalidade trouxe à tona mil questões e aflições e passei a sentir um sofrimento intenso.

Só clamei por alguns instantes: “Deus, Deus, Deus”. Só isso pude dizer, como se pedisse para ser percebida e quisesse ter minha história corrigida, alterada por alguma entidade que detivesse esse poder, ou que algo acontecesse para me tirar daquela angústia.

O dia foi todo de dor, de emoção, de confusão, mas basicamente em silêncio. Custei um pouco a dar o passo seguinte, informar aqueles com os quais me preocupo – minha família. Isso não pôde deixar de acontecer naquela semana, e a dor, então, se disseminou para mais pessoas.

Ao ver o exame, a médica se certificou de que realmente eu sofria de um câncer na mama direita, e passamos a buscar o tratamento.

Felizmente, eu, que sempre me senti uma pessoa abençoada, pertencente a um núcleo familiar maravilhoso composto por pais e irmãos incríveis, fui agraciada mais uma vez com o que me aconteceu dali em diante. Por intermédio de uma conhecida, hoje uma grande amiga, consegui ser atendida rapidamente num hospital que é referência nacional no tratamento de câncer, o Hospital de Amor (antigo Hospital de Câncer de Barretos), localizado no interior do estado de São Paulo.

Confesso que os acontecimentos foram pesados nesse curto tempo, da descoberta à definição das medidas necessárias dali em diante. Medo, ansiedade, angústia, insegurança, desolamento, confusão, desânimo, esses são apenas alguns dos sentimentos que experimentei.

Tendo me consultado no referido hospital, onde tive de refazer todos os exames que atestaram um câncer maligno, em menos de um mês eu já estava operada. Fiz uma mastectomia total na mama direita, que foi reconstruída na mesma ocasião por reposicionamento de parte do músculo grande dorsal das costas, para compor o tecido necessário (o bico do seio foi reconstruído com um retalho de pele extraído também das costas).

Ativa, no peso, não fumo, não bebo, vegetariana, feliz. Esse é meu perfil, resumidamente, cujas características não condizem com aquelas consideradas propensas ao desencadeamento da doença.

 

Não estava nos planos desenvolver câncer, até pouquíssimo tempo atrás eu mal sabia detalhes a respeito, só muito superficialmente. Mas aconteceu. Acontece.

 

Desde então vivo a fase mais delicada e mais transformadora da minha vida. A que exigiu os maiores cuidados, e na qual me deparei com todas as minhas fragilidades mas também com a minha potência. E fico muito contente por ter tido o discernimento de, rapidamente, fazer uma opção por jogar a meu favor, encarar da melhor forma os acometimentos decorrentes, com positividade e aceitação. Sou uma otimista incurável, isso sim.

 

 

Mais do que entender as razões, busco dar um sentido. São tantas as hipóteses e pretensas justificativas do por que isso acontece com determinadas pessoas, que penso que não vale a reflexão. Sabendo de que nunca terei uma resposta precisa, não fico fazendo a pergunta.

Minhas energias são todas direcionadas para o meu bem-estar, e esse seria um conselho que daria se alguém me pedisse. É importantíssimo aprender a administrar o sofrimento, e essa lição vale para todos.

Caso pudesse ter optado, jamais escolheria passar por isso, obviamente, mas peguei pra mim assim que soube, e fiz disso meu “turning point”, meu ponto de virada. Com toda angústia, insegurança, ansiedade e medo que vem no pacote. E acho que me saí bem.

É o tipo de situação arrebatadora da qual não se pode fugir, não dá pra negligenciar por que é das mais complexas, mas fica a critério o como se relacionar com isso. E eu não tenho vocação pra derrota. E nem pra revolta. Agradeci desde o primeiro momento, ainda que resignada.

Em decorrência disso tenho exercitado diariamente os sentimentos e condutas mais nobres tal como paciência, fé, gratidão, paz, amor, compreensão, fortaleza, e tantos outros. E o mais significativo deles, a resiliência.

Sinto-me uma privilegiada pois desde o primeiro momento contei com uma rede de pessoas fantásticas me amparando, e a essas devo tanto. Devo tudo. Família, amigos, desconhecidos (que passei a conhecer e a amar com toda força), tanta gente de bem veio pra junto de mim. Emociona.

E é por essa e outras que só consigo encarar como uma oportunidade o que tem me acontecido, porque por mais que eu lamente e lide com as consequências, é o tipo de situação que traz a gente “pro jogo”, postura que muitas vezes adiamos vida afora.

Que “a vida só acontece fora da zona de conforto”, como ouvimos dizer, mas é tão difícil de incorporarmos. E constatando ainda outros clichés literalmente na pele, como “a gente só sabe da força que tem quando a única alternativa é ser forte”, e o mais importante deles, “só o que permanece é a impermanência”. Não existem garantias. Portanto, não espere a situação ideal para ser feliz, a dor é inerente à vida, mas sofrimento pode ser relativizado.

 

 

Enquanto eu fiz radioterapia, morei na cidade onde me tratei, pois era preciso ir todos os dias ao hospital. Eu me sentia bem, apesar da bagunça que tinha virado a minha mente. Pedi à minha família que me deixasse ficar lá sozinha, não quis nenhum acompanhante. Senti que eu precisava mergulhar em mim mesma, passar os dias praticamente sozinha e em silêncio. E assim o fiz.

Escrever poderia ajudar a elaborar o que sentia e organizar meus pensamentos, então eu comecei. De início trechos isolados, pensamentos vagos, algumas informações para embasar, alguns conteúdos para provocar. E aquilo foi tomando corpo e eu, que não sou escritora, todo dia me deparava de novo regando aquela semente, até que a vi germinando.

De algo que eu fazia exclusivamente pelo meu bem, passei a pensar se poderia se tornar algo a compartilhar, que pudesse beneficiar a mais alguém. Porque ecoavam algumas vozes de pessoas que relatavam que minha postura as surpreendia, ou mesmo as inspirava, a forma como eu respondia ao que vinha vivendo. Então, eu passei a tentar entender o que me mobilizava, e que as comovia, e a pensar se isso tinha potencial para se tornar mundo.

De lá para cá escrevi por vezes mais, por vezes menos, dei pausas, quis abandonar, avancei, foram muitos os movimentos, e bem diversos. Mas a intuição sempre voltava a apontar para isso, e a escrita se dava conforme os processos internos aqui ocorriam, eu percebi.

Então, respeitei a alternância das minhas estações, mas meio que de uns tempos para cá me vi sem alternativa, já era tempo. Se sou boa escritora ou não, minha escrita tendo potencial ou não, se outras pessoas irão usufruir ou não, importava mais que eu a colocasse a serviço, porque de uma muda singela isso tinha virado uma árvore aqui dentro, que crescia e se expandia, estava robusta e não cabia mais só internamente.

Quando eu entendi que era para virar livro eu dei esse formato ao que brotou do meu processo de transcrever em palavras um sentir e a reflexão acerca da experiência complexa de transformação que vivi, e mais, dela situada e expandida, porque não haveria de ser um livro sobre mim, nem sequer sobre câncer exatamente.

Eu estava era interessada em abordar a questão do manejo do sofrimento frente a situações de crise, que podem ser ou não decorrentes de uma doença, de modo a superá-las da melhor maneira possível. Mas ele, o agora livro, ainda ficou ali, paradinho por um tempo, só amadurecendo.

2018, outra Marina, uma nova vontade de colocar isso para fora. Foi direcionar energia, dar alimento e luz, para perceber que começava a ganhar vitalidade, e muitos aspectos favoráveis lindamente foram confirmando que era o momento. Acionei, e aconteceu.
Meu livro foi lançado esse mês, outubro de 2018, um mês tão representativo para a causa.

 

 

Achei oportuno ele ser oferecido nessa ocasião, pois o assunto fica em pauta e quero que esse livro seja lido pelo máximo de pessoas possível, pacientes ou não, especialmente porque o lucro a ser obtido com a venda será destinado ao hospital. Com o livro me sinto como que semeando, espalhando sementes que acredito podem fazer germinar coragem, esperança, autoamor, felicidade e plenitude onde repousarem.

Jamais conseguirei retribuir à altura tudo o que a vida me proporcionou de bom, mas quero tentar. Essa coisa de vida, com a qual me encanto cada vez mais, me inspirou a escrever “Não se acostume com a vida: reflexões que o câncer e outras situações complexas podem despertar em nós”.

Muitas vezes, a paz que a compreensão traz vem de olharmos para as mesmas questões com outros olhos, e esse outro jeito de enxergar nem sempre vem da certeza de que acessamos e entendemos tudo, de que é precisa a explicação.

Pelo contrário, vem de admitirmos que vida é mistério, e mesmo que tentemos desvendá-la, só acessamos parte desse todo, e muito do que achamos ter descoberto não passa, na realidade, de uma verdade parcial e enviesada que nós mesmos inventamos e convencionamos ser a verdade suprema.

 

 

A paz deve vir da aceitação de que isso não nos preenche completamente, o que cria em nós uma expectativa de que não há nada que seja tão absoluto que não possa ser ressignificado, nem a dor, nem o sofrimento, nem o adoecer. E nem o curar-se, pois a superação de um quadro de doença pode passar a representar o próprio renascer em vida, o despertar para uma nova etapa de quem é você, reinventado e amadurecido e com forças para ir além de onde conseguiu ir até aquele momento.

Por isso, ao escrever, mais que informar sobre o câncer, me predisponho a provocar o leitor a pensar sobre novas formas de olhar para o que é dor ou doença, que, em uma perspectiva mais abrangente, passa a representar tudo aquilo que nos desestabiliza em essência, o que é o sofrimento e como podemos minimizá-lo para nos relacionar melhor com ele, e, ainda, o que a cura pode representar, para além da superação de uma enfermidade, quando considerada uma oportunidade valiosa de nos reformularmos.

Precisei escrever este livro para me curar. Além de todas as etapas do tratamento cumpridas – cirurgia, quimioterapia, radioterapia, hormonioterapia, terapia cognitiva –, também foi fundamental, no meu processo de cura, escrever, que era para pensar melhor e porque eu realmente queria colocar essas reflexões no mundo.

Se posso, de alguma maneira, ser grata ao que experienciei e ao fato de ter sobrevivido para contar, já em outro estágio de amadurecimento, ofereço humildemente este relato e o resultado do pensamento que foi construído até aqui.

1 thoughts on “Outubro Rosa: O câncer de mama transformou Marina e a levou a escrever um livro

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