A primeira vez que viajei sozinha, saí de Salvador aos vinte e poucos anos e fui para Arraial D’Ajuda e Itacaré. Perto, se considerarmos que não saí do Estado. Inventei para meus pais que iria com uma amiga e em momento algum ela perguntou se não iria algum rapaz comigo. Ela só não queria que eu fosse sozinha.

Fui e na volta contei a verdade. Ela brigou um pouco, mas entendeu que era um caminho sem volta. Viajar só é uma experiência para a vida. É um dos poucos momentos em que você está desbravando, vivendo uma realidade em um lugar desconhecido, conhecendo uma cultura, pessoas novas, estando só no mundo em busca de si e de como você interage com ele. Minha mãe a essa altura já havia morado sozinha no Rio de Janeiro por pouco mais de um mês para fazer um curso enquanto meu pai cuidava de mim e de minha irmã em Salvador. Até hoje ela lembra esse episódio com carinho.

Viajei sozinha para o Chile. Fui pro Atacama. Embarquei num passeio para o Salar de Uyuni, na Bolívia com 11 pessoas que nunca havia visto, em dois carros, no meio do nada, com uma mochila pequena, nenhuma possibilidade de sinal de celular, um pacotinho de remédios, um casaco e 3 idiomas na cabeça. Era tudo o que eu tinha. Foi uma das melhores viagens que fiz.

Viajar só nos dá a liberdade de escolha total, de decidirmos conforme nossa vontade única o que queremos, quando e para onde. Com isso, esse período de férias deve ser vivido ao máximo, já que no Brasil – e provavelmente na América Latina – não temos muitas condições de deixar o trabalho para viajar por meses. É nesse momento que não queremos pensar em machismo, nas opressões do dia a dia, nas cantadas de esquina, nos absurdos da internet, no porteiro do prédio que aparece sorridente demais quando você está arrumada para sair, no caminho para casa, no ônibus, com medo da sombra. Da sombra.

Sabendo isso tudo e querendo viver algo diferente, viajamos. Sabemos dos riscos, não somos idiotas. Somos mulheres e podemos ser estupradas e assassinadas até dentro de casa, por sermos mulheres. Veja Carmen Maura e sua história. Aos 30 anos, ela estava em casa. Alguém se deu o trabalho de forçar sua porta, lhe ameaçar com uma arma na cabeça e lhe causar um dano grave e para vida porque achou que poderia fazer isso.

Achou que poderia lhe invadir a rotina e dispor de seu corpo, porque assim fomos vistas – e ainda somos – por muita gente. Ou veja Jyoti Singh, a garota indiana de 23 anos cujo erro foi ir ao cinema e voltar de ônibus – com um amigo. Mesmo esse amigo não deu conta da violência que estavam prestes a viver. Foi estuprada e assassinada por outros seis homens, no caminho para casa, no início da noite. Jyoti trabalhava em um call center de madrugada para ajudar os pais e usou o dinheiro de seu dote para estudar medicina. Mas seu estuprador disse que uma garota decente não sairia por aí às 21h.

Quando viajamos sozinhas, dobramos nossa atenção e cuidados. Não importa se é a cidade mais feminista e liberal do mundo. Não importa até se for uma cidade só de mulheres feministas. Desde o nascimento, toda a nossa educação assegura que nos protejamos do visível e invisível, não por sermos seres humanos que prezam pela vida, mas por sermos mulheres.

Assim, nossos pais não querem que usemos roupas curtas, não querem que voltemos sozinhas para casa depois de uma festa, não querem que peguemos ônibus ou táxi tarde da noite, não querem que bebamos, sequer que peçamos ajuda quando precisarmos. Vivemos a rotina de um medo que não parece nada demais hoje, que está entranhado, naturalizado em nós há séculos – literalmente. Então, da maior à menor cidade do mundo, andaremos cautelosamente.

Maria José Coní e Marina Menegazzo viajaram para o Equador. Foram assassinadas no litoral. Os jornais indicaram que elas estavam viajando sozinhas. Duas questões foram pontuadas pela mídia essa semana: o fato de estarem viajando sozinhas não estando sozinhas – já que uma fazia companhia à outra, e o viajar sozinha significar ausência de homem.

Quando me mudei de Salvador para o Rio de Janeiro, vim morar sozinha. Vim fazer uma especialização aos 25 anos e morei sem ninguém durante boa parte desse tempo. Ouvi de muita gente como você é corajosa, não se sente sozinha, não é perigoso, e percebi que o Rio de Janeiro se parecia muito com Salvador: duas cidades maravilhosas, mas ainda provincianas. Desde sempre ouço essa história de estar sozinha. Não entendo porque não vale para o homem, não entendo qual é a necessidade e urgência de ter alguém nas 24 horas de sua vida.

Duas meninas argentinas foram juntas de Mendoza para o Equador. Foram roubadas no hostel em que se hospedaram. Depois, provavelmente pediram ajuda a dois homens, que tentaram estupra-las, as assassinaram e embalaram seus corpos em sacos. Li essa matéria e, como toda mulher pensante, me irritou e entristeceu o fato delas estarem sozinhas, não estando. Irritou e entristeceu o desvirtuamento da notícia em si, mas me aliviou o coração a necessidade desse texto e de tantos outros que li, como o de Guadalupe Acosta, que se tornou fundamental e espalhou nossa indignação e tristeza pelo mundo. O único erro dessas garotas foi sua decisão. Foi confiar nas pessoas erradas. Mas como julgar isso agora?

 

mendoza

 

Isso não é sobre ser feminista. Isso não é sobre o dia internacional da mulher ou sobre o mês da mulher. Porque ser mulher ainda é muito difícil. E não é difícil pela ladainha das cantadas tristes que somos obrigadas a ouvir e de alguma forma esquizofrênica entender como um elogio, mas por não entender como tanta gente ainda não entendeu que somos tão humanas, livres e independentes, donas do nosso próprio corpo, como eles.

O mais triste desse episódio não é apenas a violência brutal, sofrimento e morte dessas meninas que decidiram viver juntas uma viagem pelo continente. O mais triste disso tudo é o coro de preocupação dos pais e familiares ser reforçado com mais esse argumento e assim, muitas garotas e mulheres desistirão de seus planos de viajarem sozinhas mesmo, desacompanhadas e viverem a experiência de suas vidas.

Eu sinto muito pelos meus pais e pais de algumas amigas e colegas. Continuaremos viajando sozinhas. Ou acompanhadas por outras de nós. Resistiremos a mais essa restrição, a mais um cerceamento. Não somos inconsequentes, não somos infelizes solitárias em busca de alguma aventura amorosa no estrangeiro. É apenas sobre ir e vir. E continuaremos indo.

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