Eu brincava com meus primos na rua de pega-pega. Corria o quarteirão inteiro. Batia neles. Apanhava. Batia de novo. Ficava de castigo. Até ficar de bem e começar tudo de novo. Era a única menina da família, uma prima, única neta. Mas isso não estava muito claro na minha cabeça, porque minha mãe – apesar de falar para eu sentar de pernas cruzadas e tomar cuidado para não aparecer a calcinha – nunca me impediu de brincar com meus primos.
– Ela vai se machucar! Gritava minha avó, desesperada com as brincadeiras que a gente inventava.
– Do chão não passa! Respondia minha mãe. E eu ficava felizona com isso e continuava a bagunça com a primaiada.
Mas um dia eu acordei com uma sensação estranha. Dor de barriga. Eu tinha uns 10 anos e ainda não tinha conversado sobre praticamente nada com minha mãe sobre sexo, corpo e sangue. Sangue no meu corpo! MÃEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!!!!
Eu dei um grito tão forte que se fechar os olhos me lembro da minha cara de assustada no banheiro e minha calcinha manchada. Era uma mistura de pânico com MORRI!
Minha mãe tinha saído para ir à padaria e meu pai veio ver o que estava acontecendo. Eu tranquei a porta do banheiro. Instintivamente eu queria minha mãe. Estava com medo.
Ela chegou e veio ao banheiro ver porque eu estava trancada. Abri a porta devagarinho chorando e quando ela viu a cena – ao contrário do que eu imaginava – ao invés de ficar desesperada, me abraçou e se emocionou. Ela já é uma mocinha! OI???
Então ela me apresentou um absorvente que parecia um tijolo de algodão, enquanto me contava que a partir daquele momento eu agora tinha que me comportar mais, me cuidar,
me preservar, coisas assim. Minha mãe me amava, ela estava reproduzindo o que a mãe dela falou no momento em que ela também ficou mocinha em sua vida. Era um carinho e cuidado, mas que fizeram odiar aquele momento. Eu só pensava que por algum motivo, meu corpo estava me punindo e aquele sangue ia me impedir de ser quem eu queria ser. Só porque agora eu era uma mocinha. AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!
Tá bom, entendi mamãe…
A partir daquele dia, os finais de semana tinham os gritos da minha avó:
– Para com isso! Você já é uma mocinha!
Eu detestava aquela frase. Não queria ser mocinha, queria brincar de cada macaco no seu galho com meus primos. Queria continuar sendo como era antes. E às vezes achava chato ser mulher. Por que os meninos continuavam correndo e eu agora era a mocinha da família?
Conversando com minhas amiguinhas do colégio, descobri que elas também estavam se tornando “Mocinhas”. Todas mais comportadas – com as dicas de etiqueta das mães e avós. A gente não podia mais fazer molecagens. Tinha de se comportar. E a gente ficava dividida entre ser o que a gente queria e ser o que a nossa família e sociedade esperava da gente.
Etiqueta. Regras. Convenções. Tradições.
Um dia, depois de reclamar muito com minha mãe sobre o porquê eu não poderia mais brincar como antes e não subir nas costas dos meus primos para pegar manga no quintal da minha avó, ela falou – parecendo que estava desabafando comigo – VOCÊ PODE SER QUEM VOCÊ QUISER, FILHA! Era um desabafo. Minha mãe nunca gostou de convenções e às vezes tentava seguir as regras da família tradicional, mas sempre dava um jeito de preferir ser feliz. AMÉM!
Ela percebia o quanto eu ficava acuada quando alguém da minha família usava a frase de congelamento automático: – Você já é uma mocinha! Para me impedir de fazer algo.
Me lembrava da calcinha suja de sangue e sentia vergonha. Parecia que estava nua.
Então, ela e eu, num segredo de mulheres, combinamos que quando alguém da minha família ou de qualquer outro lugar falasse isso eu responderia: – E daí?
Ela também me falou sobre gravidez, sobre cuidados com o corpo, sobre ficar “Mal falada”. Sobre convenções idiotas que as pessoas tinham. Ela me ensinou a jogar o jogo como uma mulher e a não precisar me culpar por ter virado mocinha. Aos 10 anos eu tinha me tornado uma e teria de ter orgulho disso. Era o primeiro passo para me tornar uma mulher. E ter orgulho disso. Acho que foi ali – numa conversa sincera com minha mãe – que descobri aos quase 11 anos, o peso de ser uma mulher. Numa sociedade machista e que não espera nada além de que a gente se comporte, cruze as pernas, fale manso e saiba sentar à mesa.
Hoje, 26 anos depois, ainda me deparo com convenções sem sentido. Ainda percebo em algumas meninas a vontade de pular e se descabelar como os meninos e vejo mães – mesmo sem perceber – bloqueando estas pequenas mulheres. Mocinhas.
Não façam isso com suas meninas!
Empodere suas meninas e mostre a elas a força que elas têm. O feminino é poderoso e menstruar é parte deste poder. Cuide de suas meninas, mas não as deixe numa bolha. Elas precisam descobrir o poder de ter se tornado mulher e isso dependerá de você, mãe. De você também, pai. Empoderem suas meninas para que elas se orgulhem de serem mulheres e descubram quem verdadeiramente são e querem ser.