Uma das polêmicas do Festival de Cannes este ano foi sobre o salto alto nos eventos de gala. O que terminou como um ‘boato’ de algumas atrizes que não puderam ir ao evento por usar sapatilhas, revolveu os ânimos de todos e a conversa se estendeu aos circuitos de produção e exibição cinematográficas. A diferença salarial, os quesitos propostos em seleção de elenco, a latinidade como símbolo sexual, trabalho ilegal ou doméstico, a objetificação feminina e, por fim, a disparidade entre o número de diretores e diretoras de filmes.
É entre estas questões que estreou este mês o Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. O filme nacional chegou com barulho por duas razões: a qualidade inquestionável e a polêmica em torno do debate com a diretora após exibição em Recife. E foi justamente por ser bom que todo o resto aconteceu.
O filme conta a história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica pernambucana que trabalha para uma família de classe alta em São Paulo. Val mora onde trabalha, recebe a notícia de que sua filha Jéssica (Camila Márdila) irá à cidade prestar o vestibular e sua chegada rompe com o equilíbrio da casa. Temos aqui um retrato fiel das diferenças sociais e a delicada relação entre patrão e empregado. Frases como você é como se fosse da família são utilizadas de forma inócua, sem se perceber um preconceito gritante no quase, além de ser uma mentira descabida. Passiva e pacífica, Val receberá a filha que vem do nordeste, sempre estigmatizado pelos sudestinos educados. Jéssica, ao contrário do que se espera, é letrada, impetuosa e com um caráter contestador, se surpreende e se incomoda com a submissão confundida na obediência da mãe na casa.
A mesma objetificação da mulher em Cannes está aqui no papel de Jéssica que Carlos, o pai da família, tenta seduzir. O preconceito de classe e território são vividos em diálogos honestos e bem construídos. Regina Casé e Camila Márdila levaram juntas o prêmio de melhor atriz em Sundance este mês, reforçando a relação orgânica entre as personagens, que dão o peso certo à trama.
E então, semana passada aconteceu o debate com Anna Muylaert, e os cineastas Cláudio Assis (Baixio das Bestas) e Lírio Ferreira (Sangue Azul) que, alcoolizados, não permitiram que se continuasse a conversa. O machismo deu as caras, quando um filme cujo foco está na mulher e é dirigido por outra não pôde ser debatido. A necessidade de chamar a atenção não esbanja outra razão que não ocupar um panteão que não lhes pertence. Para quem discorde e encare como exagero, uma das observações de Assis foi sobre a protagonista estar acima do peso. Talvez a postura destes honestamente talentosos diretores – que se desculparam após a repercussão – não tenha sido conscientemente para atrapalhar, mas é um fato estabelecido que a provocação reafirmou a velha cartilha do nosso comportamento em que o homem tem que estar à frente – ainda que precise atropelar quem estiver passando ou, simplesmente, calar a mulher que fala. Que horas ela volta? desbancou os candidatos brasileiros à vaga do Oscar 2016. Os filmes eram de diretores homens.
Dá só uma olhadinha no trailer, corre pro cinema e depois conta pra gente o que achou. 😉