Depois do carnaval, nós resolvemos não nos calar mais. Bebemos cerveja, somos boa parte dos consumidores da bebida e ainda assim, somos representadas como objeto nas campanhas publicitárias.
O Plano Feminino entrevistou o grupo que resolveu discutir o machismo nas propagandas de cerveja com um documentário independente, o “Mulher, Cerveja e Machismo – A Representação Feminina nas Propagandas de Cerveja”. Em fase de pré-produção, o documentário já tem uma página no Kickante, site de financiamento coletivo, e só será viabilizado se conseguir atingir a meta estipulada.
Participaram do nosso bate-papo Alex Caíres (roteiro e direção), Robson Alessandro (produção executiva) e Andressa Coelho (direção de produção).
O que motivou vocês a fazer um documentário sobre o machismo na propaganda brasileira de cervejas?
Alex Caíres: 1. Exploração exacerbada sobre o corpo feminino, sempre o mote dessas propagandas, a mercantilização que existe no Brasil e no mundo. 2. O papel nocivo destas propagandas sobre o imaginário coletivo, a reprodução em escala nacional da interiorização da mulher, os estereótipos da mulher serviçal, branca, cabelos lisos, magra, padrão modelo ou se negra, da mulata exótica, de traços brancos, “objetos de desejo e conquista sexual”.
O grupo é misto, formado por homens e mulheres. Como os homens do grupo se interessaram pelo debate?
Robson Alessandro: A ideia do documentário surgiu numa conversa de bar onde comentávamos sobre a campanha “Verão”, da Itaipava e o quanto ela era agressiva, abusiva e até mesmo “criminosa” – principalmente os vídeos q não foram pra TV, que estão no YouTube. Acho q sempre tivemos essa preocupação da desconstrução de nossas atitudes machistas (afinal, somos homens e crescemos num ambiente assim) para que tivéssemos um olhar mais cuidadoso para a mulher, para a sua representatividade na sociedade. E é muito interessante como, ao longo do projeto, estamos mais focados nisso, mais conscientes. Atitudes machistas que talvez tivéssemos passam a ser percebidas e desconstruídas.
E qual o principal objetivo que vocês esperam atingir com esse documentário? É possível trazer um impacto para o cotidiano das pessoas?
Andressa Coelho: Alcançar o maior número de pessoas possível que não militam a causa feminista, porque quem é engajado sabe a real necessidade do documentário. O documentário é super importante e necessário para quem não é da causa. Mudar o rumo das propagandas de cerveja para que as mulheres se tornem parte do comercial e não mais um produto comercializado com a cerveja.
Alex Caíres: Fomentar um debate necessário por derrubar a máscara que cobre o machismo implícito nas campanhas publicitárias de cerveja, por meio da voz daquelas que consomem esta bebida e que são uma fonte de lucro preponderante deste mercado. Mais do que isso, tentar levar para as telas a opinião de mulheres de todos os tipos, mulheres de verdade e propor mudanças a partir das ideias de cada uma delas.
Como está sendo a divulgação e a arrecadação por meio da ferramenta de crowfounding?
Robson Alessandro: A divulgação tem sido constante e cada dia mais forte. estamos aos poucos saindo em sites espontaneamente. Porém a arrecadação ainda está bastante tímida. Mas acreditamos que esse início tímido é comum ao crowdfunding e que, em breve, começaremos a acelerar o processo. É um valor bastante alto e ousado para uma campanha de financiamento aqui no Brasil, mas relativamente baixo para a produção de um filme de longa metragem.
Vocês recebem apoio do público ou das marcas? Como tem sido as reações à essa ideia do documentário?
Alex Caíres: Não. Não temos nenhum apoio privado ou público. As reações são em sua maioria positiva, porém essa recepção não ultrapassou a barreira do “Parabéns pela iniciativa” até agora.
Robson Alessandro: Temos tido dificuldade em converter o apoio das pessoas à ideia em doações no financiamento coletivo. Precisamos que alguma empresa se interesse em patrocinar, para ajudar a batermos a meta. O filme não poderá ser produzido se o financiamento não for bem sucedido.
E como vocês vêem a postura dos anunciantes e agências sobre o tema? Algum deles poderia se interessar pelo documentário pra assumir essa causa?
Alex Caíres: É de suma importância que as marcas que são exceções no mercado façam parte do filme como colaboradores além de personagens. Afinal eles fazem a diferença, mesmo que numa parte pequena deste mercado. Marcas como DadoBier, Júpiter, Walls, Dum, etc tem a oportunidade impar de mostrar que são diferentes, que não objetificam a mulher como commodities a venda e que ainda assim são marcas conhecidas e premiadas mundo a fora.
Conhecemos publicitárias que militam pela representação da mulher como a Thais Fabris e a Maria Guimarães, fundadoras da Cerveja Feminista e do coletivo 65/10, são mulheres lúcidas que estão fazendo a diferença no meio e sei que existem outras, mas as grandes agências estão à margem das lutas e debates.
Vocês acham que a objetificação da mulher ainda traz lucros para as marcas? Esse com certeza é um dos principais argumentos, que o “machismo vende”.
Alex Caíres: As marcas lucram muito com a exposição pejorativa da mulher, tida como necessária, fetichista, sexy ou até natural. Não é “natural” ver uma mulher numa propaganda de cerveja ou de material de limpeza? Pregam que sim e esta imposição vem dos grupos dominantes. O machismo tripudia sobre a mulher e é mais uma das amarras do nosso sistema sócio econômico.
Bem, e o público? Como está a reação deles, como vocês percebem a interação deles com esses conteúdos?
Robson Alessandro: O público está reagindo bem. Tivemos muitas curtidas na página do Facebook e Instagram em tão pouco tempo. Há comentários de todos os tipos, até mesmo de pessoas que acham uma perda de tempo o nosso projeto e que não vêem as propagandas como machistas. Como eu disse anteriormente, o que infelizmente não está acontecendo é que as pessoas engajadas na página tenham a mesma atitude quanto ao financiamento.
Vocês acham que isso (campanhas machistas) é reflexo de uma crise criativa na publicidade brasileira?
Robson Alessandro: Acho que é uma grande “preguiça” mesmo e falta de criatividade. Os publicitários estão acostumados a fazer tudo de última hora, preso a padrões e fórmulas antigas. Não se colocam numa posição pensante. Não se questionam, não criam. Baseiam-se em padrões já construídos e continuam seguindo por ele.
Alex Caíres: Não vejo como uma crise criativa e sim uma falta de educação política e social. Em pleno século XXI produzir uma peça publicitária impregnada de machismo (cervejas), capaz de embranquecer um personagem negro (propaganda da Caixa Econômica onde Machado de Assis é retratado branco) ou com conteúdo homofóbico (comercial do patrulheiro das havaianas de 2010) não pode ser crise de criatividade, e sim alienação crônica e um séria crise de valores humanos e sociais.
Essas agências são compostas por profissionais da classe média que acreditam num Brasil branco, americanizado. Repare na mulher retratada na tela. Essa mulher não existe, se existe não pode representar uma nação multiétnica como a nossa.
Algumas pessoas argumentam que vocês (e outros que estão nesse debate) estão exagerando o politicamente correto. Reclamam que tudo vai ficar chato e sem humor. Como vocês respondem a essas críticas?
Alex Caíres: Veja um filme chamado O riso dos outros. Que humor é este? O humor que vive da ridicularização da mulher, do negro e do gay? Isso não é humor, é sexismo, racismo e homofobia. Atitudes que deveriam ser criminalizadas.
Vocês acham que isso aumentou a objetificação na propaganda brasileira nos últimos tempos? Acham que existem outros fatores envolvidos?
Alex Caíres: A exploração machista sempre aconteceu, acreditamos que antes era pior, pois o machismo e outros preconceitos eram aceitos com naturalidade. Veja as propagandas dos anos 90 disponíveis no Youtube e verá que crimes contra a mulher eram cometidos em pleno intervalo do jornal Nacional. Os fatores são diversos, desde a discriminação, o monopólio cervejeiro, o apelo sexual, a alienação que impera nas agências e a pura e única preocupação comercial.
Que ações podem ser feitas para diminuir o apelo sexual nos comerciais? Vocês podem citar bons exemplos que trouxeram lucro paras as marcas?
Alex Caíres: A primeira ação é proteger a mulher contra a violência midiática. Precisamos incluir este tipo de violação na lei Maria da Penha, assim como é feito em países vizinhos como Argentina e Venezuela, onde leis protegem a mulher contra a violência simbólica e psicológica contida nestas propagandas. A segunda ação é o diálogo com a mulher, desde a realização de pesquisas de campo e opinião com mulheres e homens, por parte das marca e agências a fim de saberem o que todos pensam disso.
As marcas precisam enxergar a mulher como consumidora, uma vez que ela representa 52% da população mundial. A cerveja 803 da Perro Libre de Porto Alegre, um dos nossos parceiros no documentário, foi lançada em homenagem a mulher no dia 8 de março desse ano e prega a igualdade entre homens e mulheres na hora de beber uma cerveja. São ações ações inteligentes e criativas como essa que ajudarão no combate ao machismo e no empoderamento da mulher.
As campanhas precisam dialogar com a mulher, elas precisam ser representadas na tela como elas realmente são, brancas, negras, magras, de cabelo crespo, curto, azul, carecas, longo, etc. O Brasil é um país tropical, mas que as pessoas não vão todos os dias a praia, e onde há mais mulheres do que homens no bar, porque a mulher se emancipou. Temos uma mulher na presidência do Brasil, na Argentina, no parlamento alemão, no FMI, na maior rede social do mundo…A mulher não é mercadoria e muito menos pode ser representada como serviçal. Não me lembro da ultima vez que fui servido por uma garçonete, isso tudo é fantasia.
O mercado feminino é um mercado promissor em qualquer área. As marcas não vão perder nada, pelo contrário elas terão a possibilidade de aumentar seus lucros por dialogar com a mulher através da sua representação. As marcas precisam ousar, como a Lacta e o Sonho de Valsa nessa propagada que faz uso da diversidade, ao colocar múltiplos casais se beijando entre eles um casal de meninas.
E como vocês vêem que está a relação das mulheres, como consumidoras, com essas marcas, especialmente as de cerveja.
Alex Caíres: As mulheres consomem tanto quanto o homem, me arrisco a dizer que até mais. No trabalho são as minhas colegas que sempre me convidam pra uma cerveja depois do expediente. Eu discordo do Alan Clark (presidente da Sab Miller) que essa semana numa entrevista disse que as mulheres bebem pouca cerveja e a culpa é das peças publicitárias. Eu acredito que a mulher não deixa de tomar cerveja por causa das propagandas que a agride. Mas acho que elas passariam a beber mais se fossem prioridade das marcas. Vá a um bar e veja a quantidade de mulheres bebendo cerveja.
As micro cervejarias com suas cervejas artesanais não param de crescer no Brasil, a cada ano se popularizam mais, abrem bares, ganham prêmios no brasil e no mundo, não agridem a mulher, não fazem uso de estereótipos e apresentam lucros superiores a 1 milhão de reais por ano. Incorporam mulheres como mestres cervejeiras (2 cabeças cervejaria do RJ), dedicam cervejas à mulher e ao fim dos preconceitos (Perro Libre). Acho que o mundo da cerveja é mais um território que deve ser ocupada pela mulher, e isso já esta acontecendo. Temos especialistas em cerveja que são mulheres (Amanda Reitenbach, Gabriela Montandon, etc), publicitárias que são ativistas pela representação da mulher na mídia (Thais Fabris e Maria Guimarães, fundadoras da Cerveja Feminista e do coletivo 65/10), mulheres na cobertura jornalística e cultural de eventos ligados a cerveja e outras bebidas (Dri e Carol, do Meninas no Boteco e Fabiana Arreguy, do Pão e Cerveja, da CBN – MG) ou seja mulher bebe e muito bem.
Conhecemos mulheres que estão boicotando a Itaipava por causa desse comercial, a maioria concorda conosco e esta nos apoiando. Mas infelizmente existe uma legião de mulheres tão machistas quanto os homens e essa minoria colabora muito nessas reproduções machistas e preconceituosas.