O começo de fevereiro foi marcado pela denúncia de um vídeo em que duas rappers, numa tentativa de inverter a lógica machista, “objetificam” homens negros, e para isso fizeram uso de estereótipos racistas. Associando inclusive a figura de dois deles, a homens que não sabem “se vão roubar sua carteira, ou se elas precisam abaixar a calcinha”. Infeliz comentário? Mais do que isso, o reforço desses estereótipos nocivos matam autoestimas e vidas diariamente. E algumas mulheres brancas nem sequer pensam nas possibilidades de interpretação que a fala “baixar minha calcinha” pode ter numa sociedade na qual homens negros são vistos como predadores sexuais.
https://www.facebook.com/desabafosocial/videos/1582560911822090/
Então, quando uma mulher branca diz que um de nós tem cara de bandido, ela está ofendendo todos nós. Eu esperava mais ética racial de quem se diz feminista e é branca, mas infelizmente não é isso que vi em 18 minutos daquele vídeo. Um show de horrores, imersos de risos e racismo, combinação que está longe de ser sinal de coisa boa. E claro, que o racismo delas chocou muita gente. Contudo, é preciso mais do que o choque: é necessário a demarcação de que condutas como essas são inaceitáveis! O ponto é que isso não pode vir só de negros: onde estão os brancos anti-racismo quando as brancas saem por aí assimilando ser negro, periférico a “ter cara de bandido”?
Eu não sei onde eles estão, só o que sei é que enquanto brancos faziam piada, a jovem de apenas 20 anos Barbara Querino estava presa. Ela, uma jovem dançarina, foi detida duas vezes: uma no dia 4 de novembro no final de 2017 e outra no dia 16 de janeiro. Na primeira vez, a jovem ficou 16 horas imobilizada numa viatura, foi detida acusada de fazer parte de dois assaltos a mão armada em 10 e 26 de setembro de 2017. Depois de liberada no dia 16 de janeiro, foi presa novamente, pois ela teria sido identificada por uma testemunha. O que ninguém consegue provar é se de fato ela estava envolvida, já que a acusada tem provas que vão de uma série de testemunhas a posts em redes sociais, que estava no dia 10 em questão, viajando a trabalho fora da cidade onde aconteceu o assalto. Muitas pessoas dizem que sequer têm tempo para se opor a casos como esse, se articular e agir, mas é claro que brancos têm tempo para rir de Yasmin Stevam e de seu cabelo, fazer memes e ainda questionar o direito que ela tem de ter o cabelo que quiser e não ser obrigada a sofrer racismo e ficar calada diante disso.
Então, enquanto brancos fazem piada, a gente segue negro, marcados pela dor do que é ser negro: sendo presos de fato em celas lotadas de presídios sem infraestrutura cheio de presos negros que sequer responderam pelo que são acusados, muitas vezes são inocentes e/ou foram pegos por pequenas infrações, mas não receberam o devido auxílio jurídico. Presos num padrão estético excludente que nos cerceia e limita nossa sobrevivência ao negar nosso acesso a trabalho. Presos numa suposta democracia racial que está matando nossas vidas físicas e psicológicas diariamente.
O que precisamos fazer para que brancos acreditem que o racismo é um problema deles também?
Acho que nós, negros, somos muito gentis e até esperançosos, ao contrário do que pensam aqueles que nos chamam de linchadores violentos, em relação aos nossos conhecidos brancos. Infelizmente, eu venho perdendo essas virtudes “afetivas amorosas” com o tempo, umas das rappers do tal vídeo não só era uma feminista, como frequentava os mesmos espaços que várias feministas negras, tendo contato direto com algumas de nós, tendo acesso às leituras, textos, críticas e apontamentos sobre racismo. Ou seja, uma mulher que tinha acesso ao tal conhecimento “para não se manifestar de forma racista” de forma tão cruel e violenta.
Mesmo assim, essa mulher em questão não se absteve de usar o racismo de forma tão cruel e violenta, mesmo que ela soubesse, pois nós, feministas negras, sempre falamos isso: que a figura do homem negro ocupa um outro lugar no imaginário e no simbólico, numa sociedade racista. Mesmo que ela soubesse que a cada 23 minutos um jovem negro é morto, que existem centenas de Barbaras e Yasmins, que nós, mulheres negras, também fazemos parte do grupo “mulheres” e que se são feministas numa sociedade que existem mulheres negras, o mínimo que deveriam é não ser racistas. Sendo assim, resumir negros a objeto é violento e sempre será num país que escravizou nossos antepassados. Para piorar, essas duas mulheres estavam dentro de um meio, o Hip Hop, onde o debate sobre racismo e as consequência violenta dele em forma de genocídio, encarceramento, pobreza, e violência são recorrentemente temas dessa cultura. Então, elas não sabiam o que estavam fazendo, ou simplesmente fizeram achando que aquele era o caminho a ser seguido? Como dizia Abdias do Nascimento:
“É ignorância ou má-fé”?
Como nós negros podemos lidar com isso? Como uma amiga me disse em mensagem:
“(…) se 10 anos no Hip Hop não removeram esse nível de racismo delas, o que é necessário pra tirar o racismo de um branco?”
Eu realmente não sei! E isso é desesperador! Já são anos de ativismo negro. Já são inúmeros livros escritos. Já são inúmeros dados provando que o racismo existe e é um fato. Já são centenas de milhares de negros mortos pelo racismo. Já houve negros que combateram o racismo com um discurso violento e que foram perseguidos. Já houve negros que combateram o racismo com um discurso de paz e que foram também perseguidos. Já houve negros que acreditaram que “éramos todos humanos” e foram também perseguidos e ofendidos por serem negros. Já teve peça de teatro, filme, dança e até mesmo mímica para falar para pessoas brancas que o racismo é um problema dessa sociedade que deve ser enfrentado.
O que mais os brancos esperam que a gente faça para um problema estrutural que não é só nosso?
Já fizemos nossa parte e, mesmo assim, o sujeito branco parece estar estático acreditando que tudo isso é sobre os “outros” e nunca sobre si mesmo. O sujeito branco só se move para espezinhar, coletivamente ele se une não só para nos incriminar, como para avacalhar e rir de nós. Eles se unem para tirar nossas vidas, físicas e psicológicas, não podemos negar que existe um grau de entendimento e crueldade nas atitudes de brancos que é pensada a partir do momento que ela é mantida como conduta mesmo depois de tantos alertas. Sujeitos negros crescem sendo inferiorizados por uma série de piadas, comentários e supostas opiniões de brancos que acreditam no seu poder e superioridade à medida que continuam nos menosprezando, isso nos fere, nos limita e nos aprisiona. Isso nos mata das mais diversas formas que é possível matar uma pessoa.
Recentemente ao cobrar uma pessoa para ter um posicionamento em relação a essa pessoa racista do vídeo, que por sinal é próxima a ela, me veio a fala de que ela “teria questões maiores a resolver no momento” e que não tem que ficar “cuidando” da vida de mulheres adultas. Mais uma vez, o racismo é colocado no status do desentendimento passageiro. Só que logo em seguida veio aquela fala camuflada, mas que já conhecemos: dos homens vocês não falam, né? Impressiona como feministas brancas, acham que ser feminista é não entender que existe a possibilidade de criticar a falta de ética e o racismo de outras mulheres.
Precisamos evidentemente falar dos Brancos Cínicos, que andam com mulheres negras, para obter até algum tipo de benefício simbólico disso, mas que não assumem nenhum comprometimento real com nossa luta. Todo esse episódio me lembrou a personagem Barb da série American Crime, que deixou evidente que toda dona de casa racista, no fundo se sente muito mais próxima de supremacistas brancos, do que do bom senso, quando quer defender seus interesses e a manutenção da sua “honra”. Essa personagem deixa claro que brancos sempre serão brancos, enquanto a sociedade for racista, e que eles sempre vão defender mais a honra de um mulher branca mesmo que ela admita um crime, e responsabilizar o sujeito negro homem até o limite. E que nessa história nós mulheres negras sequer somos lembradas pelas “manas”.
Alguns brancos não seguem grupos mais violentos de supremacistas, mas evidentemente agem que o racismo deles foi “curado” quando começaram a ler uns textos aqui e ali, e se comportam como se os “brancos racistas” fossem apenas os outros.
Que outros?
No caso dos brancos, sempre que a nossa resposta ao racismo de alguma forma começa a incomodar seu status, eles se munem do próprio racismo que dizem repudiar. Por isso, quando uma pessoa num caso de racismo diz “tenho vergonha de ser branco“, isso para mim entra por uma orelha e sai pela outra. Evidentemente isso bastaria: ela se acomoda na lógica de tentar se diferenciar dos demais, e se esquece que para isso ser fato, acontecer, ela precisa de muito mais que a suposta vergonha dos “seus”. Pessoas brancas precisam saber seu lugar na luta antirracista e elas EVIDENTEMENTE não sabem.
Algumas acham que por ter pais, amigos, namorados, o que for, que são negros, elas têm todo o aval para agir de “igual para igual” com negros. Quer igualdade? Então se preocupe com Barbaras, com Yasmins, com Cláudias, com Rafaeis, com meninos negros que tem suas mochilas reviradas na escola pelo exército no Rio de Janeiro. Nós não podemos rir e nos calar quando os próximos podem, de fato, ser qualquer um de nós, negros, marcados e odiados que viram piada para alegria racista branca. O riso supostamente inocente, que não está longe de nenhum supremacista pois não existe racismo mais leve ou menos leve. Racismo é racismo, e ele matou a Claudia Ferreira da Silva, prendeu a Barbara Querino e riu da cara de Yasmin Stevam. O riso, que é tão grave quanto a inércia de quem diz não concordar.
No fundo seguimos nós por nós, aqueles que sabem que se carregam a marca, não terão paz enquanto essa estrutura for mantida.
Atualização: Em relação ao caso de Barbara Querino, o habeas corpus foi negado, sendo assim, ela continuará presa. Amigos e familiares estão fazendo uma vakinha para arrecadar fundos para pagar as necessidades jurídicas: