Por Priscilla de Sá

O blog #agoraéquesãoelas trouxe, na sexta-feira passada, um relato impressionanteNo texto, Su Tonani diz ter sofrido assédio sexual por parte do ator José Mayer, durante os oito meses em que trabalhou como figurinista assistente na TV Globo.

O que teria começado com um “como você é bonita” culminaria em um grito de “vaca” no meio do estúdio. Ela conta que, somente depois de ser ameaçada, decidiu denunciar o ator de 67 anos ao RH da empresa.

A Globo prometeu apurar e cortou Mayer da próxima novela das nove de Aguinaldo Silva. O ator se pronunciou, primeiramente, negando e depois pediu desculpas em carta aberta, alegando ser fruto de uma geração que confunde machismo com brincadeira.

(Não) Vale a pena ver de novo

Enquanto aguardamos – atentas – o desfecho desse caso, relembramos outro que movimentou a imprensa e as redes sociais.

Em junho do ano passado, o funkeiro MC Biel chamou a repórter do Portal IG, que o entrevistava, de gostosinha, e disse que a quebraria no meio.

Ele perdeu contratos publicitários, gravou um vídeo pedindo desculpas, deu um tempo dos palcos e… se relançou recentemente.

Abusos cometidos por homens em posição considerada superior ou vantajosa contra mulheres no exercício de suas funções profissionais, a gente vê não só por aqui.

Em 2010, o ator Casey Affleck foi processado por uma produtora e uma diretora de fotografia. Os advogados dele propuseram acordos extrajudiciais e as ações nem chegaram a ser julgadas.

E a carreira de Affleck? Vai muito bem, obrigado. Ele inclusive ganhou o Oscar de melhor ator em 2017.

 

A pergunta que não quer calar

Impossível não questionar: De que maneira mulheres anônimas feito você e eu podemos blindar a carreira contra o assédio sexual, se até nos casos que chocam a opinião pública os criminosos parecem sair menos prejudicados que as vítimas?

 

O primeiro passo para corrigir qualquer injustiça é sempre a conscientização. Por isso, nunca é demais lembrar que:

 

 

  • Assédio sexual não é elogio:

 

Não é o teor nem o perfil do autor da investida que caracterizam o assédio. Quem define se é ou não assédio é a vítima, pois o que diferencia cantada de assédio é a emoção que a aproximação provoca.

Incomoda? Constrange? Expõe? Coage? Intimida? É assédio!

Então, não importa se ele “apenas” comentou a sua roupa ou se apalpou a sua genitália. Se ele é feio ou bonito, pobre ou rico, Zé Ninguém ou José Mayer. Não importa se todas as mulheres do mundo fariam de tudo para estar com ele. Você não quer, não é não, e ele tem que respeitar.

 

 

  • Assédio sexual é culpa do assediador, nunca da vítima:

 

Será que, ao ler esses relatos, não sentimos uma vontadezinha de ver uma foto da figurinista, da repórter, da produtora e da diretora de fotografia?

É compreensível que, em algum lugar do nosso imaginário moldado por séculos de patriarcado, ainda busquemos, na aparência ou no comportamento das vítimas, o elemento que possa ter motivado o assédio.

Uma falácia. O assediador não enxerga na vítima uma pessoa e sim uma ferramenta de autoafirmação. Essa escolha pode obedecer a um padrão ou ser totalmente aleatória, ou seja, independe do comprimento da saia, do batom, do fato de ela sorrir demais ou de encher a cara no happy hour.

Então desista da burca: nenhuma mulher está livre de assédio sexual.

Lidemos com o fato de que não existe mulher irresistível nem hormônios irrefreáveis. O que existe é um machinho narcisista querendo expandir seus limites ao ignorar os da vítima. Gostar de vagina é bem diferente de gostar de mulher. E gostar de mulher é bem diferente de gostar de poder. É de brincar de poder mais que tipos assim gostam.

Escreva no seu caderninho: “A culpa nunca é da vítima.” Isso. Agora só mais 99 vezes.

 

 

  • Assédio sexual é crime:

 

Compreendido como o aproveitamento do cargo exercido para retirar vantagem sexual de um subordinado, o assédio sexual é crime previsto no artigo 216-A do Código Penal Brasileiro, punido com detenção de um a dois anos (além de demissão por justa causa).

Atualmente, alguns Tribunais Regionais do Trabalho têm reconhecido o assédio sexual praticado por colegas de mesmo nível hierárquico.

Em defesa própria, os assediadores costumam dizer que foram mal interpretados, por isso é recomendável manifestar o seu desacordo o quanto antes, textual e assertivamente.

Caso os ataques persistam, o caminho da denúncia costuma ser: Gestor – Departamento de Recursos Humanos e /ou Compliance – Boletim de Ocorrência na Delegacia da Mulher – Justiça.

É válido desabafar com um colega de confiança (que pode vir a atuar como testemunha e ajudar a reunir provas) e reportar o fato à entidade de classe à qual você pertence.

 

 

  • Empresas que toleram assédio (de qualquer tipo) não servem para você

 

A cultura organizacional se revela na liderança. Se quem está no topo pratica assédio moral, bullying e outras formas de opressão, dificilmente o RH vai tratar adequadamente os casos de assédio sexual.

O roteiro manjado da gestão de crise (reconhecer o erro – pedir desculpas – prometer providências – punir) é um ponto de partida, mas não é o bastante. Empresas que são ou pretendem ser marcas fortes não vão sobreviver se realmente não incorporarem a aversão ao machismo e à misoginia, na prática e em todos os níveis.

Muitas empresas estão manifestando esse desejo de maneira genuína e educando os seus colaboradores. Outras já perceberam que não é inteligente perder os talentos femininos e tendem a ir pelo mesmo caminho.

É claro que ainda há organizações conservadoras, que se assustam só de ouvir falar em empoderamento feminino, mas isso não vai durar muito; uma nova geração de mulheres chega ao mercado de trabalho questionando os selecionadores sobre as reais oportunidades de crescimento para elas.

Essas jovens fazem o que todas nós deveríamos ter feito, sempre. Vale a pena mapear as empresas que possuem mulheres na liderança e comitês femininos de mentoria. Mais importante que cargo, salário e benefícios é a segurança de poder se desenvolver em um ambiente que empodera você.

Eu sei que é utópico falar em escolher emprego no Brasil, quando 13 milhões de pessoas não têm nenhum, mas, em longo prazo, essa é a única forma de garantir a sustentabilidade da sua carreira.

 

 

  • #SororidadeContraOAssédio

 

 

As pessoas mais indicadas para nos ajudar são aquelas capazes de se colocar na nossa pele. Verdade? Nem sempre. Su Tonani contou que as colegas riram quando José Mayer passou a mão nela.

“Eu me vi só, desprotegida, encurralada, ridicularizada, inferiorizada, invisível. (…) Não havia cumplicidade, sororidade.”

Provavelmente, as colegas de Su ainda acham o assédio aceitável, quando praticado por um famoso.

Ainda bem que cada vez menos mulheres pensam assim, como a atriz Letícia Sabatella, que manifestou apoio à figurinista pelo Facebook e a editora-chefe, que assinou a reportagem denunciando Biel 

Nós, do Plano Feminino, acreditamos no poder da sororidade e convidamos você a se manifestar sempre que uma mulher for vítima de assédio sexual, mesmo que ela própria não consiga dizer isso com todas as letras.

Você pode começar agora:

  • escutando o que ela tem a dizer
  • ajudando-a a nomear o que sente
  • buscando juntas orientação sobre os próximos passos
  • se posicionando quando o assunto surgir na baia ao lado ou na mesa do bar, e disserem que a culpa é da mulher
  • organizando grupos para debater, conscientizar e pressionar (como o #jornalistascontraoassédio , e o #chegadeassédio *)
  • denunciando o assediador
  • compartilhando esse texto e as hashtags #chegadeassédio e #mexeucomumamexeucomtodas

Esse e todos os casos de assédio sexual que estão acontecendo agora, longe dos holofotes, podem ter um final diferente, escrito por todas nós.


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Por Tati Reuter

 

Um amigo acaba de mandar uma mensagem dizendo estar convencido de que o mundo mudou e anexou a notícia do galã de novela que assediou uma figurinista e foi afastado indefinidamente do trabalho. Almocei com um grupo de colegas, a maioria, homens, e o assunto da mesa foi o assédio, o feminismo, o machismo, os exageros, o debate, o que se pode e não fazer.

Foi uma conversa tranquila e meus colegas, este grupo pelo menos, estava interessado em debater e entender o viés feminino, para além dos radicalismos e compreender, de fato, o conceito de machismo, dessa cultura e das implicações.

A Rede Globo apoiou o movimento das funcionárias, com as hashtags #chegadeassédio e #mexeucomumamexeucomtodas. A proposta é de que a campanha se espalhe por todo o Grupo, mas já tomou as redes sociais e os meios de comunicação. O ator, José Mayer, 67 anos, se retratou e pediu desculpas publicamente em uma carta aberta, se dizendo ‘uma pessoa melhor’ agora que aprendeu que, de fato, somos tão seres humanos quanto ele e o obrigamos a nos respeitar da mesma forma. Ele assediou a figurinista Susllem Tonani, que o denunciou no dia 31 de março, no blog #Agoraéquesãoelas, na Folha de São Paulo.

Não coincidentemente, este mesmo ator representou ao longo de sua carreira e por décadas, um mesmo perfil, o estereótipo do ‘macho’, do homem ‘brabo’, ‘viril’, ‘selvagem’, que, inclusive, costumava ganhar os corações de suas espectadoras e o orgulho dos espectadores no horário nobre. Este perfil era sempre rude, sempre assediador e de alguma forma violenta. O personagem é tão comum na trajetória do ator e nas novelas, que ele mesmo se confundiu, ao se desculpar inicialmente, dizendo que o assédio à figurinista era obra de seu personagem do trabalho atual e não correspondia com sua personalidade. Será?

Também não é coincidência que a idealizadora da campanha, a fotógrafa baiana Catarina Rangel, seja uma grande profissional e amiga, e o orgulho que sinto por ela e pelas colegas que participam explode no peito. Em um momento de incômodo e resistência, esse que nos consome diariamente, anunciou no seu perfil no Instagram:

“Recife, 31 de março de 2017. Li aquele noticiário no jornal e pensei: vamos ter que engolir mais um assédio? Vamos ter que nos calar diante de uma situação que vemos acontecer todos os dias? Não! Precisamos fazer algo! E eu fiz. Criei um grupo de WhatsApp com 15 amigas com o intuito fazer um movimento de mudança dentro da nossa empresa. Pensamos em uma camisa, pra chamar atenção e a partir disso podermos dialogar! O grupo cresceu em poucas horas. De tão cheio, não cabia mais ninguém e resolvemos virar um grupo no Facebook. A proporção que isso tomou saiu do meu controle e encheu meu coração de alegria e amor. Mexeu com UMA, mexeu com TODAS! Obrigada a todas as mulheres que colaboraram pra esse lindo movimento! Vistam suas camisas e vamos unidas lutar por mudanças, pois sim, elas estão por vir! Amor, Catarina Rangel. #mexeucomumamexeucomtodas  #chegadeassédio”.

A empresa apoia o movimento das funcionárias, engrossando o coro:

a emissora enfatizou que repudia toda e qualquer forma de desrespeito, violência ou preconceito. E que zela para que as relações entre funcionários e colaboradores se deem em um ambiente de harmonia de acordo com o Código de Ética e Conduta do Grupo Globo. Esta convicção da Globo foi reafirmada para um grupo de atrizes, diretoras e produtoras, reunidas no domingo à noite, quando a emissora informou que, apurado o caso, tomou a decisão de suspender o ator José Mayer de produções futuras dos estúdios Globo por tempo indeterminado.(…) Sobre a iniciativa de funcionários, colaboradores e executivos de usar hoje camisetas com os dizeres ‘Mexeu com uma, mexeu com todas’, a Globo se solidariza com a manifestação, que expressa os valores da empresa. (…) A Globo lamenta que Susllen Tonani tenha vivido essa situação inaceitável num ambiente que a emissora se esforça cotidianamente para que seja de absoluto respeito e profissionalismo. E, por essa razão, pede a ela sinceras desculpas”.

O fato é que tudo não começou com este assédio. Ele é histórico e reincidente em muitas empresas, em um cotidiano corporativo que nem deveria ser sexualizado, no primeiro momento. É por isso o movimento e é sobre isso que precisamos falar constantemente.

É muito cedo e ingênuo dizer que ‘o mundo mudou’, que ‘o país mudou’ ou até acreditar fielmente nas melhores intenções expostas na carta do ator, que tinha por obrigação se desculpar por um ato execrável e não merece mérito algum por isso. O mundo não mudou, porque o ator ainda acha que o que fez

“mesmo não tendo tido a intenção de ofender, agredir ou desrespeitar, admito que minhas brincadeiras de cunho machista ultrapassaram os limites do respeito com que devo tratar minhas colegas. Sou responsável pelo que faço”

Foram brincadeiras. Não foram brincadeiras. Não devem sequer ser compreendidas como tal. A grande mudança talvez se vislumbre na dimensão que o abuso tomou nos meios, na não aceitação a mais uma provocação, a mais uma brincadeira, e principalmente pela postura adotada pela empresa e pelos comportamentos de seus funcionários.

Os personagens do José Mayer não cabem mais na vida real. Não funcionam no cotidiano e não devem ser mais permitidos ou aceitos para além da esfera da fantasia ou do deboche e do escárnio. Que este caso sirva como exemplo, índice de mudança, proposta de transformação, reeducação e análise de comportamento e a notícia se espalhe em todas as empresas, em todos os trabalhos, que gere um alerta de consequências para que nos deixem trabalhar – o que todos deveriam estar fazendo, antes de qualquer coisa.  

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