Kenia Maria é uma mulher incrível. De múltiplas faces. Militante feminista, atriz, escritora, YouTuber, mãe de santo e Defensora dos Direitos das Mulheres Negras, nomeada pela ONU Mulheres, em 2017. Sua militância começou cedo, quando adolescente, por meio da dança africana, ela buscava empoderar meninas das comunidades enquanto promovia o resgate da ancestralidade. Sobre o convite da ONU, ela conta como aconteceu e um pouco da sua história.

“O convite surgiu por conta da minha história e da minha família. Sou do subúrbio e venho de uma família de militantes, como o capoeirista Mestre Celso. Meu nome é KENIA por causa do país africano e eu participo de projetos sociais desde os meus 13 anos, quando minha mãe me introduziu ao universo da dança no resgate da minha ancestralidade. Eu tenho uma herança espiritual muito grande. Sou mãe de santo, que é uma herança deixada pelo meu avô. Minha militância aumentou aos 18 anos, quando participei da fundação do AfroReggae, em Vigário Geral. Lá precisei lidar com meninas muito machucadas pela extrema violência presente na comunidade. Era um tempo em que não adiantava falar de feminismo e direitos, a gente precisava falar de vida, de sobrevivência no meio de uma guerra. Desde então, nunca parei de lutar. Há cinco anos, criei com meus filhos e marido, o ator Érico Brás, o canal “Tá Bom Pra Você”, no YouTube, onde questionamos a ausência do negro na publicidade. E agora estou prestes a lançar dois livros infantis que tratam da história afro-brasileira.”

Como mãe, Kenia ensinou aos filhos que mulheres e homens têm direitos e deveres iguais. Que devem respeitar a qualquer um, mas também lutar se achar que algo está errado. Em casa, Matheus, 21, e Gabriela, 19 anos, desempenham as tarefas de casa de forma igualitárias mas, nas ruas, sabem que a desigualdade ainda impera e enfrentam o preconceito racial e de gênero.

Em fevereiro, ela estava com a filha Gabriela em um shopping do Rio quando sofreram assédio por parte de um turista que tentou tocar em Gabriela, e, depois de reclamar, o abusador ainda disse que faria de novo e as chamou de faveladas. As pessoas que viram a cena, reagiram e mantiveram o homem no shopping até que a polícia os acompanhasse até a delegacia, onde Kenia fez a denúncia.

 

 

Além das questões de assédio, que Kenia sofre com frequência, tanto ela como a filha, ela também fala sobre o racismo, que ainda é muito enraizado não só no Brasil, mas no mundo todo e a luta é diária para tentar acabar com o preconceito.

“Teve um episódio muito marcante e doloroso, e diz respeito ao racismo no atendimento médico. A mulher negra é tratada com diferença dentro dos hospitais e isso se deve a uma herança histórica. [No século 19, o médico norte-americano James Marion Sims, que depois viria a ser conhecido como o “pai da ginecologia” usava escravas negras como cobaia de seus experimentos e descartava o uso de qualquer tipo de anestesia. Desta maneira, ele concluiu de maneira equivocada que a mulher negra era resistente à dor.] Esse é um mito que a gente paga até hoje. Há três anos, sofri um aborto espontâneo e cheguei ao hospital particular com muita dor na alma, porque esperávamos muito por aquele filho, e física. A médica me olhou e perguntou se, antes de me medicar, poderia me examinar. Segundo ela, eu suportaria. Esse foi o caso de racismo mais forte que já sofri. E hoje já é comprovado que as negras recebem menos anestesia durante o parto, além do tratamento inferior nas consultas.”

 

 

Kenia ainda fala sobre a participação dos negros no mercado publicitário e o quanto isso é reflexo de uma sociedade machista e racista. Segundo dados da pesquisa “Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil“, publicada em 2016, ainda que sejam 51,9% da população economicamente ativa do país, os negros e negras são apenas 35,7% de funcionários e funcionárias de empresas.

Conforme aumenta o cargo, a presença de negros cai drasticamente. Eles representam 25,9% das pessoas nos cargos de supervisão, 6,3% nos cargos de gerência, 4,7% no quadro executivo e 4,9% nos conselhos de administração. As mulheres negras representam apenas 0,4% das executivas nas 500 maiores empresas do país.

“O machismo e o racismo ainda estão impregnados na cultura organizacional. Existem dados que revelam isso. Então, é papel desses setores incentivar que mulheres e negros ocupem postos com salários melhores e posição de comando. É preciso atitude das empresas para incluir as mulheres negras, além de identificar e não tolerar o assédio moral e sexual.”

Sobre seus planos, são muitos, claro, mas entre eles, Kenia luta para acabar com o preconceito, com o racismo, com o machismo e quer que mulheres e negros estejam cada vez mais presentes no mercado de trabalho, na tv, nas propagandas. Ela quer que eles sejam cada vez melhor representados, que tenham voz e vez na sociedade. Além disso, como Defensora das Mulheres Negras pela ONU Mulheres, ela quer resgatar a história das mulheres negras e levar isso até as escolas.

“Quero resgatar cada vez mais a ancestralidade das religiões de raízes africanas em nosso País e também fazer valer a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, mas que ainda não é cumprida. É preciso levar a representatividade para as crianças. E para isso vou usar muito o poder mobilizador da Internet.”

Representatividade. Está aí uma palavra tão importante, mas ainda tão pouco praticada na nossa sociedade. A luta da Kenia é extremamente importante, assim como nós também lutamos aqui por um mundo mais justo, mais igualitário, com menos preconceito, menos violência. Desejamos que esses planos se tornem realidade em breve, pra que nossas futuras gerações colham os bons frutos da nossa luta. Vamos juntas, Kenia!

 

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